Alguns aspectos da reforma política (crítica jurídica)

A mídia nacional tem dado relevante destaque à chamada ?reforma política?, noticiando geralmente o pensamento dos políticos em evidência, sempre assediados por jornais e televisões.

Provocado pelo assunto, especialmente pela pesquisa realizada entre os estudantes de pós graduação em Sociologia Política da UFPR, publicada na revista Paraná Eleitoral n.º 53/54, edição temática ?Qual reforma política??, entendo oportuno fazer algumas considerações, pelo prisma jurídico da matéria, aspecto que, a meu ver, está sendo relegado a menor importância.

São diversos os temas da reforma. Dentre eles se destacam quatro, que são realmente do interesse do povo e do eleitor: a questão da fidelidade partidária; as listas partidárias, abertas ou fechadas; o voto obrigatório ou facultativo; o sistema eleitoral com voto distrital, misto ou puro.

Os outros três, com a devida vênia, na verdade, são de interesse do partido, de eventuais candidatos, dos políticos por profissão. Não interessam ao povo. São eles: o financiamento com recursos públicos da propaganda; cláusulas de barreira e as legendas de aluguel.

Cumpre deixar registrado, embora com certo constrangimento, que os integrantes do Congresso, muitas vezes só votam alterações do nosso sistema político atual, quando em interesse próprio ou do partido ao qual pertencem. A articulista Dora Kramer, em texto intitulado ?A teoria da melhor parte?, publicado no jornal ?O Estado de São Paulo?, edição de 10 de março de 2005, deixa isto bem claro, quando escreve…?a reforma política que os partidos se propõem a aprovar ainda este ano está sendo construída à imagem e semelhança do velho ditado: quem parte e reparte sempre fica com a melhor parte?.

Alterações fundamentais, que efetivamente aperfeiçoem o nosso sistema político-eleitoral, sejam do interesse da nação, esperadas pelos eleitores, ou mesmo quando propostas pela Justiça Eleitoral, quando contrariam os interesses partidários ou pessoais, ditados geralmente à vista de eleições próximas, tem os respectivos projetos postergados para as ?calendas gregas?, recebendo inúmeros substitutivos ou emendas.

Os dois primeiros pontos, de real interesse para o aperfeiçoamento de nosso sistema eleitoral, colhendo a melhor experiência de outros países, mas sem prejuízo de nossas tradições, é que serão objeto destes comentários.

Fidelidade partidária e perda do mandato

A fidelidade partidária merece ser analisada sob dois aspectos: adesão aos princípios declarados no estatuto, implicando em disciplina, sob sanções; e eventual perda do mandato eletivo, por troca de partido.

A lei n.º 9096/95, chamada Lei Orgânica dos Partidos Políticos, estabelece, entre outras situações, que o estatuto de um partido político deve conter normas sobre ?fidelidade e disciplina partidárias? (artigo 15, V); o candidato deve obrigatoriamente estar filiado a um partido, ou seja, não se admite candidatura avulsa (artigo 18); a atividade parlamentar do filiado deve subordinar-se aos princípios doutrinários e pragmáticos do partido ao qual pertence (artigo 24). A escolha dos candidatos de um partido se faz através de uma convenção – Lei 9504/97, artigos 7.º e 8.º e seus parágrafos.

O filiado deve mostrar coerência com a linha político-ideológica do partido, como tal definida em seus atos regulamentares, sob pena de sanção disciplinar (artigo 23). Esta fidelidade, pelo sistema da lei, e a priori, tem foros de obrigatoriedade.

O Código Eleitoral (Lei 4.737/65) assegura o exercício de direitos políticos, notadamente de votar e ser votado (artigo 1). O artigo 87 é mandamental: ?somente podem concorrer às eleições candidatos registrados por partidos?. Assim, em eleição proporcional, o voto é vinculado ao partido ao qual pertença o candidato; por isso que é permitido votar-se apenas na legenda (artigo 176), tendo esta preferência, no caso de dúvida (CE, artigo 177; Lei 9.504/97, artigos 59 e 60). Em qualquer nível de eleição proporcional, consigna-se na ata geral (CE, artigo 202) o quociente eleitoral e o partidário. Dependendo do número de votos recebidos pela legenda, resulta o número dos candidatos eleitos pelo partido, na ordem da votação individual recebida.

Decorre daí, portanto, que o mandato do eleito deveria pertencer, na realidade, ao partido pelo qual ele se registrou candidato (só se é candidato através de um partido, ut artigo 87, antes citado). Isto fica claro, especialmente na hipótese em que o eleito não alcançou sozinho o número necessário de votos, aproveitando-se então dos votos de outros menos votados, ou até mesmo da distribuição das chamadas ?sobras?. Oportuno lembrar o teor do artigo 107 do Código Eleitoral: ?determina-se para cada partido ou coligação o quociente partidário dividindo-se pelo quociente eleitoral o número de votos válidos dados sob a mesma legenda ou coligação de legendas, desprezada a fração?.

Parece lógico deduzir-se, pois, que o eleito pela legenda de um partido, está obrigado a permanecer na agremiação partidária, até o fim do mandato que lhe foi outorgado pelas urnas, mas em razão dos votos obtidos pela legenda de seu partido. O mandato deveria então pertencer ao partido, e não à pessoa do candidato eleito. E, se mudasse de partido no curso do mandato, deveria ter cassado o diploma recebido ? no qual consta obrigatoriamente a legenda pela qual concorreu (artigo 215, parágrafo único do CE), dando seu lugar ao seguinte mais votado, porém do mesmo partido. Em interpretação sistemática da legislação eleitoral, outra não poderia ser a solução.

É sentimento popular que o mandato eletivo também deveria pertencer, de certo modo, aos eleitores fieis ao partido. Afinal ?todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes? (Constituição Federal, artigo 1.º parágrafo único). O mandato é uma delegação do povo; não é propriedade particular do eleito. A já citada jornalista DORA KRAMER, em artigo publicado na Gazeta do Povo, edição de 1.º de junho de 2005, referindo-se a eleitores da deputada federal DENISE FROSSARD, que mudou de partido durante o mandato, saindo do PSDB para o PPS, disse que os eleitores da mesma ?ponderam que gostariam de ter sido consultados de alguma maneira quando ela decidiu mudar de partido no meio do mandato?.

Todavia, a legislação atual deixou de prever expressamente a sanção da perda do mandato eletivo, na hipótese de troca de partido.

Isto ocorre porque a Constituição de 1988 não repetiu o disposto no artigo 152, § 5.º da Carta de 1969 para determinar a mesma sanção. Em 1985, com a Emenda Constitucional n.º 25/88, essa sanção da perda do mandato foi abolida, e assim não repetida na Lei Maior de 1988.

Lastimável esta omissão, votada pelos constituintes de 1988, evidentemente em seu próprio interesse. Há referências que a perda do mandato seria um ?entulho autoritário? então a ser removido; todavia, pelo prisma da Ética, tal omissão não seria recomendável. Alguns dizem, também, que a perda do mandato somente seria compatível com o sistema do uno – partidarismo, ou partido oficial. No entanto, adotado no Brasil o critério do voto de legenda, existindo vários partidos, este argumento não parece razoável.

Este autor tem o entendimento, após experiência no TRE/PR que, com ou sem legislação expressa, de índole constitucional ou ordinária, a perda do mandato eletivo, por troca de legenda no curso do mandato, deveria acarretar a perda do mesmo, pelo deputado ou vereador, a favor do partido por cuja legenda o candidato foi eleito. E isto decorreria do próprio sistema da legislação vigente, como exposto acima.

Este entendimento, no entanto, e com o devido respeito, é formado mesmo contra decisões do TSE e do próprio STF. Com efeito, logo após a promulgação da Constituição, desde 1989, o TSE decidiu no sentido de não mais existir a dita sanção. Neste passo, seguiu a orientação do SUPREMO, no Mandado de Segurança n.º 20.916/DF, relator Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em outubro de 1989, quando se assentou, após longa discussão, por maioria, tal tese. A despeito da solidez dos argumentos da douta maioria, deveria prevalecer, data venia, a tese defendida no voto do Min. CELIO BORBA, inclusive sob o argumento que o partido é indispensável para o mandato, eis que faz a intermediação ente o povo e os governantes.

Em julgamentos do TSE a mesma solução foi dada. Convém mencioná-los. Um deles é o acórdão nrº 10.988, no recurso nrº 8527/SP, relator Min. ROBERTO ROSAS, quando se assentou que ?certo ou errado, o legislador constituinte não restabeleceu o princípio da fidelidade partidária como obrigação para a manutenção do mandato do eleito por um partido?. Outro é o acórdão n.º 11.075, de abril de 1990, no recurso 8535/MS, relator Min. Célio Borja ? vencido no julgado do STF ? cuja ementa diz ?revogadas pela Carta de 1988 as normas infraconstitucionais dispondo sobre perda do mandato por infidelidade partidária (Res. 15.135), carece o recurso de pressuposto para sua admissibilidade?.

Alguns juristas afirmam que a perda do mandato só poderia decorrer de texto constitucional, pois se trata de matéria atinente à cidadania e à estrutura de um dos poderes da república; o mandato eletivo independeria do partido, que seria apenas o meio de legitimar uma candidatura. Outros afastam a possibilidade do estatuto de um partido prever tal sanção – o que seria aceitável – pois entendem que, a despeito da autonomia dos partidos, isto seria matéria da competência legislativa da União.

A única sanção para a hipótese reside no artigo 26 do Código Eleitoral, pois que um eleito perderia o cargo ou função exercido na Casa Legislativa, em virtude da ?proporção? partidária: ?…parlamentar que deixar o partido sob cuja legenda tenha sido eleito?.

Bem atentos ao texto da lei, o princípio violado não seria o da fidelidade partidária, mas o da dita ?proporção partidária? nas comissões, mesa diretora, etc.

O fato é que a nação tem assistido, com pasmo e sob censura, mudança de partidos, ao sabor das conveniências de momento, eleitoreiras e quiçá econômicas, ou mercê de outras vantagens que são usualmente oferecidas.

Como dito antes, o princípio da fidelidade partidária está minimizado, e tem sido tratado pelos próprios políticos, pelo prisma de seu interesse pessoal ou partidário, vênia concedida para tal afirmação. A solução que pretendem criar para fortalecer dita fidelidade, não se refere à perda de mandato, mas ao tempo de filiação para ser candidato pelo partido. A Lei Orgânica impõe o prazo de um ano antes das eleições. A Lei 9504/95 estabelece o domicílio eleitoral também por um ano e filiação deferida pelo mesmo prazo de um ano (artigo 9).

O projeto de lei n.º 1.172, de 2003, da Comissão Especial de Reforma Política, propõe a manutenção do prazo de um ano, quando se tratar de primeira filiação; aumentado para dois anos, quando o candidato já tenha sido filiado a outro partido anteriormente (artigo 2.º).

Tal solução é parcial e insuficiente. Embora seja oportuno evitar a ?prática das mudanças de legenda? antes de qualquer pleito, como esclarece a justificação do projeto, melhor seria penalizar o eleito que muda de legenda após sua diplomação, e vedar o benefício para outro partido, que se afigura até ilegal, de aumentar a sua bancada, pela adesão de parlamentar não eleito sob sua própria legenda, durante o curso do mandato.

Esta situação, examinada à luz dos princípios gerais do direito, é claramente irregular; e pelas normas de direito privado, até permitiria uma condenação indenizatória, se não por danos concretos, ao menos por danos morais. Não se deve esquecer que os recursos do partido advém de um fundo partidário e a mudança de partido por um eleito atinge a toda a coletividade da agremiação política!

De qualquer sorte, pelo sistema das leis eleitorais vigentes, pode-se extrair a existência da punição mencionada, àquele que viola o princípio da fidelidade partidária. A sanção é medida imperiosa, até mesmo para vedar o escandaloso e vexatório comércio de mandatos eletivos, que tem ocorrido às abertas, até mesmo a nível do Congresso Nacional. Repetindo o tribuno Cícero, na famosa Catilinária: ?O tempora, O mores? !

Listas partidárias – inconstitucionalidade

projeto de lei n.º 2.679, de 2003, da Comissão Especial de Reforma Política esclarece o que seriam, e como funcionariam, as listas partidárias:

Artigo 2.º do projeto, alterando o artigo 108 do Código Eleitoral:

?Estarão eleitos tantos candidatos por partido ou federação partidária quantos o respectivo quociente partidário indicar, na ordem em que foram registrados?.

O substitutivo ao projeto n.º 2.679 referido, agora da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, com o intuito de ?promover reforma nas instituições político-eleitorais?, pretende a inclusão no artigo 109 do Código Eleitoral, de um parágrafo primeiro, que teria a seguinte redação:

?o preenchimento dos lugares com que cada partido ou federação for contemplado far-se-á segundo a ordem em que seus candidatos forem registrados nas respectivas listas ?.

O intuito de tal alteração melhor aparece pelas propostas de alteração do artigo 8.º da Lei 9504/97, a saber:

?A escolha dos candidatos pelos partidos ou federações e a definição da ordem em que serão registrados devem ser feitas no período de 10 a 30 de julho do ano em que se realizarem as eleições, lavrando-se a respectiva ata em livro aberto e rubricado pela Justiça Eleitoral?.

Então, o que mudaria, na realidade? A resposta é simples: o eleitor não votaria mais em candidato de sua escolha pessoal, mas em chapa formada pelo partido, que colocaria os candidatos em ordem preferencial numérica. Deste modo, quem indicaria os eleitos seriam os partidos (através de suas convenções) e não mais o eleitor.

A pesquisa feita entre os alunos de pós-graduação em Sociologia Política da UFPR, no Paraná Eleitoral n.º 53/54, antes referida, apresenta respostas altamente esclarecedoras. Entre as favoráveis: necessidade de aperfeiçoamento da vida partidária, sob pena dos cargos ficarem sempre com os ?donos? do partido; elimina o personalismo e evita a paroquialização da vida política.

Já entre os contrários, avultam as seguintes opiniões: controle absoluto dos ?caciques? sobre o partido; eleições menos competitivas; eliminação de empregos gerados pelas campanhas políticas; oligarquização do sistema partidário.

Em recente seminário sobre a reforma política realizada em Curitiba, colheram-se a opinião de alguns congressistas. Em contrariedade ao entendimento da deputada Luiza Erundina, levantou-se o parecer da deputada Clair da Flora Martins, advogada militante, forte no sentido de que ?a escolha interna dos nomes das pessoas que irão representar a sociedade no Parlamento é menos democrática que a escolha direta, por voto nominal? (Gazeta do Povo, 14/05/05, pág. 7).

É de notar, portanto, que a idéia da lista ?fechada?, formada pelas lideranças, tem o claro sentido de reforçar a estrutura e a importância das agremiações políticas. Tal idéia está colocada com vigor na justificativa do projeto n.º 2.679, já referido.

Esta solução, com a devida vênia, se me apresenta como claramente inconstitucional, por violação frontal ao artigo 14 da Constituição de 1988:  ?a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos…?

A interpretação do que seja voto direto encontra-se muito bem esclarecida nos comentários de UADI LAMMEGO BULOS, no livro ?Constituição Federal Anotada?, pág. 424:

?O voto é o exercício do direito do sufrágio. Ambos são inconfundíveis, porque o voto é a manifestação prática do direito subjetivo público do sufrágio.

Direto é o voto emitido pela escolha própria e independente do eleitor. Na sua prática não influem intermediários nem terceiros interessados ?.

E quanto ao voto secreto:

?Secreto, por sua vez, é o voto emitido em sigilo, sem qualquer interferência alheia?.

Daí resulta claro, a qualquer operador do Direito, que as listas fechadas, formadas pelo partido, impostas à vontade do eleitor, por uma minoria (convencionais de um partido), registradas publicamente, frontalmente violam os princípios pétreos da Carta Magna: voto direto e secreto.

A violação ao dogma do voto direto consiste em que o eleitor não votará em pessoa de sua escolha, mas em candidato apontado pelo partido, e na ordem de preferência que o partido desejar. E a infringência à cláusula do voto secreto, é que, pela lista partidária, o vontade do eleitor é conduzida , dirigida por interferência de um partido ? ao qual ele poderá nem pertencer.

Por oportuno, veja-se sob que argumento os autores da idéia das listas partidárias procuram desvirtuar os príncípios constitucionais, como consta da justificativa do projeto:

?Não há falar, com a introdução do voto em lista partidária preordenada, em ofensa ao princípio do voto direto, cláusula pétrea da Constituição. Voto direto significa que o voto significa que o voto leva à apuração do resultado da eleição sem decisão intermediária (sic). Fica excluída, por exemplo, a eleição por meio de delegados, num colégio eleitoral. O eleitor escolhe diretamente o partido, o que significa escolher um grupo de candidatos organizados em lista, os quais eleitos na ordem em que nela se apresentam, vão desempenhar sua função no parlamento?.

É completamente desavisada esta justificativa, que só viria favorecer os próprios profissionais da política, interessados em eleições proporcionais. Sem prejuízo da evidência da inconstitucionalidade do projeto – ao menos nesta parte – parece também totalmente inconveniente a adoção das listas partidárias, em país com tantos e tão fracos partidos políticos, com enorme extensão territorial, com grandes parcelas de nossa população alheias aos temas nacionais, em permanente luta contra as dificuldades econômicas e sociais.

Felizmente, a barreira da inconstitucionalidade deverá prevalecer.

Como já disseram alhures: precisamos de uma reforma da política, e não uma reforma política !

Carlos Fernando Correa de Castro é advogado; ex-juiz do TRE/Pr; membro do Instituto dos Advogados Brasileiros; conselheiro nato do Instituto dos Advogados do Paraná.

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