Além do certo e do errado e o ensino jurídico

Talvez uma das principais questões relativas à aplicação da ?justiça(1)? seja a que diretamente diz respeito à formação (e/ou à ?de+formação?) daqueles que detêm em suas mãos a tarefa institucional de dizer o que é ?justo?. Em um segundo momento, talvez seja ainda, como corolário da tarefa institucional de dizer o que é justo, procurar dar efetividade ao que for, prévia ou posteriormente, declarado justo e, através da manifestação política desse seu poder, ordenar à força estatal que obrigue aos autores de atos declarados ?injustos? a devolverem (punindo-os de alguma forma) a sensação de justiça à sociedade e a praticarem, no futuro, somente atos que se ajustem ao que institucionalmente for tido como ?justo?, se é que isto é possível.

Portanto, saber quais os contornos que delimitam o significado do vocábulo justiça é imprescindível. Da mesma forma é imprescindível saber como nasce, como se forma em cada ser humano um conceito de natureza tão fluida. Somente depois de identificado um núcleo capaz de, minimamente, servir de mote para a definição de um conceito tão celestial, tão etéreo e impalpável é que será possível se estabelecer um limite de variabilidade aceitável para dos conceitos possíveis para o vocábulo justiça.

Há mesmo que se pensar ser possível considerar a questão da formação daquele a quem cabe dizer o que é justo como fundamental. De que adiantaria um excepcional arcabouço legislativo, um extraordinário acervo de instrumentos legais para regular as ações humanas em sociedade, se aqueles que se utilizam de tais ?instrumentos? para valorar os atos humanos não detêm competência geral e excelência intelectual para manejá-los com precisão e perícia?

Os operadores do direito (juízes, promotores, advogados, delegados etc) devem, nesta República Federativa do Brasil, Estado Democrático de Direito, ser, em regra, bacharéis em Direito. Portanto, há que se levar em consideração de que boa parte da formação do espectro conceitual do vocábulo justiça cabe às Faculdades de Direito.

Entre as tarefas das Faculdades de Direito, pensamos nós, está a de preparar o futuro operador do direito para compreensão máxima das diversas acepções que possa ter o vocábulo justiça. Isto, por si só, impede a existência de uma definição dogmática de justiça. Contudo, ao que parece, boa parte das Instituições de Ensino Superior destinadas a formar bacharéis em direito está mais preocupada em solidificar dogmas do que em formar operadores capacitados a pensar a respeito da justiça. Reduzem a acepção do vocábulo justiça à afirmação maniqueísta de certo ou errado. Sempre tendo em conta o viés judaico-cristão que se relaciona diretamente com o pecado. Esquecem-se as IES de mostrar quais são as premissas daqueles que se julgam no direito de dizer o que é certo ou errado, bem como, e principalmente, qual o objetivo que se busca quando se procura institucionalmente valorar uma conduta como certa ou errada.

Justiça (do latim justitia, em geral designa a ordem das relações humanas ou a conduta de quem se ajusta a esta ordem) é perspectiva (do latim perspectiva ou visus, de perspicere, ver claramente ou através de, de prospicere, ver de frente, perspectiva é genericamente designada como a ?ciência da visão?, tendo, inúmeras acepções na história do pensamento ocidental).

Estabelecemos aqui então a premissa condutora do nosso raciocínio no presente artigo que, diga-se de passagem, não tem a menor pretensão de ser adjetivado como científico, posto que, efetivamente, não o é. Trata-se apenas de um incipiente e singelo raciocínio, o que não significa dizer que seja simplório ou produto de um sujeito ingênuo, papalvo ou pateta.

Vejamos então a premissa condutora das nossas elucubrações: Justiça é perspectiva.

Com isso queremos dizer que a justiça tem sido tratada como a ordem pré-concebida para as relações humanas que se econtram sujeitadas a determinado modo de ver ou, como prefere o senso comum, que são produto de determinado ?ponto de vista?. Daí porque é perspectiva – emerge a natureza fluida do conceito de justiça, vocábulo incapaz de alcançar unanimidade (residindo aí o seu valor), circunstância esta que é, por si só, imanente ao termo, afinal, os conceitos produzidos pelas ciências humanas são quase sempre de natureza cultural. Demarcado está o nosso ponto de partida.

Em junho de 1885, Friedrich Nietszche, no prólogo da obra intitulada ?Alem do Bem e do Mal prelúdio a uma filosofia do futuro(2)?, apresentou-nos os seguintes questionamentos e considerações: ?Supondo que a verdade seja uma mulher não seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres? De que a terrível seriedade, a desajeitada insistência com que até agora se aproximaram da verdade, foram meios inábeis e impróprios para conquistar uma dama? É certo que ela não se deixou conquistar e hoje toda espécie de dogmatismo está de braços cruzados, triste e sem ânimo. Se é que ela ainda está em pé! Pois há os zombadores que afirmam que caiu, que todo dogmatismo está no chão, ou mesmo que está nas últimas. Falando seriamente, há boas razões para esperar que toda dogmatização em filosofia, não importando o ar solene e definitivo que tenha apresentado, não tenha sido mais que uma nobre infantilidade e coisa de iniciantes; e talvez esteja próximo o tempo em que se perceberá quão pouco bastava para constituir o alicerce das sublimes e absolutas construções filosofais que os dogmáticos ergueram alguma superstição popular de um tempo imemorial (como a superstição da alma, que, como superstição do sujeito e do Eu, ainda hoje causa danos), talvez algum jogo de palavras, alguma sedução por parte da gramática, ou temerária generalização de fatos muito estreitos, muito pessoais, demasiado humanos?.

Com o devido ?respeito? e resguardadas (e muito bem resguardadas mesmo) as devidas proporções, de uma forma muito singela e sem pretensões nobres, ousamos trazer tal perspectiva para o campo relacionado com aquilo que se possa pretender designar por justiça (tenha-se em conta que estamos a falar de justiça e não de direito) e, parafraseando Nietszche, substituirmos no texto apresentado o vocábulo verdade pelo vocábulo justiça bem como, o vocábulo filósofos pela expressão operadores do direito e, desta forma, identificar os motivos pelos quais tem sido tão difícil para as faculdades de direito aproximar seus discentes daquilo que significa o termo justiça.

Assim lançamos as seguintes perguntas e considerações: Supondo que a justiça seja uma mulher não seria bem fundada a suspeita de que todos os operadores do Direito, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres? De que a terrível seriedade, a desajeitada insistência com que até agora se aproximaram da justiça, foram meios inábeis e impróprios para conquistar uma dama? É certo que ela não se deixou conquistar e hoje toda espécie de dogmatismo está de braços cruzados, triste e sem ânimo. Se é que ela ainda está em pé! Pois há os zombadores que afirmam que caiu, que todo dogmatismo está no chão, ou mesmo que está nas últimas. Falando seriamente, há boas razões para esperar que toda dogmatização em justiça, não importando o ar solene e definitivo que tenha apresentado, não tenha sido mais que uma nobre infantilidade e coisa de iniciantes; e talvez esteja próximo o tempo em que se perceberá quão pouco bastava para constituir o alicerce das sublimes e absolutas construções sobre justiça que os dogmáticos ergueram alguma superstição popular de um tempo imemorial (como a superstição da alma, que, como superstição do sujeito e do Eu, ainda hoje causa danos), talvez algum jogo de palavras, alguma sedução por parte da gramática, ou temerária generalização de fatos muito estreitos, muito pessoais, demasiado humanos.

Importante reafirmar que o objetivo do presente texto é o de, simplesmente, provocar reflexão, reflexão sobre qual deve ser, para as pessoas em geral, em especial para os operadores do direito e muito mais especialmente ainda para os encarregados de dizer o direito, o conceito de um vocábulo tão carregado como o vocábulo justiça, bem como quais mecanismos são capazes de nos aproximar cada vez mais do real significado deste termo.

Ensina Nicola Abbagnano(3), sobre o significado do verbete justiça que ele representa ?em geral, a ordem das relações humanas ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem. Podem-se distinguir dois significados principais: 1.º J. como conformidade da conduta a uma norma; 2.º J. como eficiência de uma norma (ou de um sistema de normas), entendendo-se por eficiência de uma norma certa capacidade de possibilitar as relações entre os homens. No primeiro significado, esse conceito é empregado para julgar o comportamento humano ou a pessoa humana (esta última com base em seu comportamento). No segundo significado, é empregado para julgar as normas que regulam o próprio comportamento humano. A problemática histórica dos dois conceitos, ainda que freqüentemente interligada e confundida, é completamente diferente?.

Portanto, temos que duas são as acepções universalmente aceitas para o vocábulo justiça. 1.º) justiça como conformidade com a norma e 2.º) justiça como eficiência da norma. Em ambas as acepções o vocábulo justiça encontra-se intrinsecamente ligado ao vocábulo norma, do latim norma, que significa regra ou critério de juízo. Para o senso comum norma é a lei.

O senso comum é pródigo em reclamar ?justiça?, o que acontece na mesma proporção em que não mede adjetivos para indicar ter sido objeto de alguma injustiça. Isso, por si só, não representa um problema. O problema reside no fato de que o senso comum acredita sempre ser detentor do mais absoluto ?bom senso? o que lhes outorgaria o poder de, indubitavelmente, apontar o que é justo. Bom senso, já ensinava Descartes(4), ?é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o tem?. Portanto, sempre que as coisas não acontecem de acordo com o ?bom senso? do senso comum, são consideradas injustas. Acontece que o senso comum não reconhece a norma, ou a lei, como sendo, também, perspectiva, perspectiva institucionalizada, perspectiva dominante. Para o senso comum norma e lei são coisas, entes e, por isso são admitidas como existentes e, se existem, são inquestionáveis e, se são inquestionáveis são pontos fundamentais, portanto, são dogmas.

Esquece-se o senso comum que, na grande maioria das vezes, é ele próprio resultado da manipulação de conceitos revelados por teleológicos e inescrupulosos empresários morais. Não percebe que não passa de um mero títere nas mãos de tais empresários. Seu perfume tem a mesma fragrância dos odores exalados pelas perspectivas dominantes. Esquece-se o senso comum que há muito ele já decidiu incorporar as idéias de outros, idéias que não foram por si elaboradas ou refletidas e, assim, simplesmente reproduz ações que lhe causam uma incurável e injustificável angústia. Mudam de ponto de vista sempre que o sol nasce. Basta que uma nova opinião, por mais absurda que seja, surja no horizonte para ser encampada. Acredita o senso comum ter posturas próprias de si, quando na verdade, se apropria da posição difundida maciçamente por quem detém o poder de influenciar. Afinal, pensar é difícil e a vida passa muito rapidamente, portanto, deixemos para os ?doutos? o trabalho de elaborar as suas próprias convicções e as do senso comum também. O homem de senso comum se esquece de suas reais responsabilidades, especialmente da maior delas que é a de pensar e refletir.

O filósofo Jean-Paul Sartre(5) afirmou no texto O Existencialismo é um Humanismo que ?o homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo?. Com isso Sartre quis dizer que o homem é responsável por si mesmo, não pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens, pelo que fazemos da sociedade e, conseqüentemente, pelo que fazemos com o mundo e com a sociedade em que vivemos. Em última análise é o homem, através de suas ações e, principalmente de suas omissões, o único responsável pela ação atribuída às instituições que não podem existir sem ele.

Assim, temos que as instituições e, por via de conseqüência, os institutos que têm gênese nas mesmas, como corolários das ações dos homens que compõem e formam estas instituições, nada mais são, também, do que aquilo que os homens delas fazem. Portanto, não só os institutos como a interpretação destes devem ser produto de intensa reflexão.

Por certo, parece-nos muito bem fundada a suspeita de que, assim como pensava Nietzsche que os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres, hoje, os operadores do Direito, pensamos nós, na medida em que, na sua imensa maioria são da mesma forma dogmáticos, entendem, também, muito pouco de mulheres.

Os operadores do direito, muitas vezes, revelamo-nos verdadeiros misóginos, pois supondo que a justiça seja uma mulher, revelamos verdadeiro desprezo e aversão à justiça. Temos uma mórbida repulsa ao contato íntimo com a justiça ou com aquilo que ela representa. Contudo, ao que parece, nem ao menos temos consciência dessa nossa misoginia. Afastamo-nos cada vez mais da justiça, o que acontece na mesma proporção e medida em que buscamos a justiça no direito revelado pelas burguesas agências legislativas, em especial as agências de criminalização primária e, depois, nas agências executivas (polícia judiciária, polícia militar, guardas municipais, etc), agências de criminalização secundárias, bem como, quando buscamos justiça em um pseudodireito revelado pelos empresários morais e, também, na mesma medida em que nos tornamos títeres da opinião pública produzida pelos meios de comunicação de massa e, por fim, na mesma medida em que nos tornamos demasiadamente dogmáticos e passamos a ser escravos da forma. Perdoem-nos o neologismo, somos datenizados(6), isto é, satanizados, assumimos as feições satânicas. Cedemos, perdemos, nos tornamos politicamente corretos, deixamos de buscar soluções para procurar apenas minimizar os efeitos dos problemas que surgem, sem buscar, efetivamente, resolvê-los. Deixamos de pensar. Tal como bois que aguardam o dia de caminhar em direção ao matadouro, pascíamos no pasto da vida ruminando e regurgitando o senso comum.

A questão está em saber por que isso acontece? Por que os operadores do direito, na medida em que nos tornamos dogmáticos, afastamo-nos cada vez mais da justiça?

Pensamos que um dos motivos do por que isso acontece se dá em razão do adestramento a que estamos sujeitados os operadores do direito. O adestramento é o foco, é o alimento para ações ou inações futuras. O alimento das idéias é quem gera, ou ao menos deveria gerar, a energia capaz de impulsionar as ações, afinal é possível afirmar que são as idéias que nutrem o espírito e é este quem deve dirigir a matéria. Se nos alimentamos inadequadamente, produzimos inadequadamente. Precisamos de uma reeducação alimentar tendo em conta que passamos por um período importantíssimo na formação do nosso caráter nos alimentando inadequadamente. Essa reeducação alimentar deve ser capaz de servir de antídoto ao adestramento ao qual estamos sujeitos desde a mais tenra idade.

Essa reeducação alimentar das idéias deveria ser aplicada, indistintamente, a qualquer do povo. Como isso se mostra inexeqüível, tendo em conta que nem todos estão preparados para tanto, deve, ao menos, ser viabilizada aos operadores do direito, como condição sine qua non para buscar tornar efetiva a produção de justiça. Conhecer os mecanismos capazes de servirem de contraveneno é fundamental. Os operadores do direito devemos receber um novo adestramento que seja capaz de nos afastar das idiossincrasias, dos preconceitos pequeno burgueses e das meta-regras imanentes a cada um de nós.

Aí, neste ponto encontra-se, ao nosso ver, o principal papel das Faculdades de Direito, das especializações, mestrados, doutorados e pós-doutorados, qual seja, fazer que aqueles que vão lidar com o direito tenham condições de elaborar bons raciocínios. Raciocínios que embora sejam idênticos a outros sejam originais de seu emissor. Fortalecer, cada vez mais e mais, os meios capazes de bloquear a influência do alimento inadequado e que tenha sido ingerido independentemente da vontade de cada um e que acabe por produzir uma energia negativa que, conseqüentemente, acabe por gerar, também, ações negativas, contudo, algumas vezes, juridicamente ?adequadas?. Criar um antídoto aos preconceitos em geral é o papel das faculdades de direito, não se olvide, entretanto, de que o próprio direito é preconceito, é conceito pré-estabelecido, é conceito antecipado. Gerar seres pensantes é a tarefa das instituições de ensino superior. Dar efetividade ao ?nosce te ipsum?, ao ?conheça-te a ti mesmo? é a missão.

Ousamos dizer que o papel das faculdades de direito ou, melhor, o papel das Faculdades de Direito é, tal qual Morfeu viabilizou a Neo no filme Matrix, dar ao seu corpo discente a possibilidade da optar entre a pílula azul e a vermelha. Neo escolheu a vermelha e teve descortinada diante de seus olhos a realidade. A realidade é dura, mas é a realidade. As faculdades de direito devem viabilizar aos seus discentes poder optar entre escolher a pílula azul (o ?direito?) e a pílula vermelha (a justiça). O sistema é a Matrix. A Matrix diz o que é certo ou errado. A revelação mostra o que é Justiça.

Os operadores do direito podem escolher entre uma ou outra perspectiva.

A justiça é sensação possível somente aos escolhidos, aos que desejam sentir-se escolhidos. A injustiça, parafraseando Fernando Pessoa, por sua vez, ?acontece a tanta gente, que nem vale a pena ter pena, da gente a quem isso acontece?.

Há que se deixar evidenciado que a grande maioria das faculdades de direito deste país não está nem aí para reeducação alimentar jurídico-cultural de seus discentes.

Primeiro em razão de que parte dos docentes não se encontra preparada para educar para o pensar. São como papagaios que apenas reproduzem as fórmulas tradicionais dos manuais mais reduzidos que se ajustem ao plano do curso.

Segundo em razão de que os discentes não ingressam em um curso superior com o objetivo de aprender a pensar cientificamente. Acreditam, piamente, já saberem como estabelecer um raciocínio lógico e bem estruturado. Os discentes querem na verdade é saber como se faz para ganhar bem e o que se pede nos concursos públicos para as carreiras de estado que, geralmente, são as que pagam bem sem que seja necessário se fazer muito esforço.

Terceiro porque os concursos públicos não querem quem sabe pensar, querem sim aqueles que têm boa memória, pelo menos é isso que tais concursos procuram avaliar.

O que se percebe é que os futuros operadores do direito, os graduandos em direito, estão cada vez mais preocupados apenas com os dogmas que lhes possam ser úteis para serem aprovados em algum concurso público que lhes viabilize um bom padrão econômico de vida. Há muito não se vê mais alunos interessados em procurar identificar como se faz para buscar a justiça. Muito longe ficou o ideal de se cursar uma faculdade de direito com o objetivo romântico de procurar saber como agir para poder discernir entre o justo e o injusto. Hoje se busca desvendar, numa visão maniqueísta patética, aquilo que, sob uma perspectiva dogmática, seja, na visão do senso comum, o certo ou o errado, mas que, ao mesmo tempo, lhes viabilize ser aprovado em algum concurso público. Em uma sala de aula com 50 (cinqüenta) alunos, quando perguntamos quantos deles desejam ser advogados, menos de 10% (dez por cento) respondem afirmativamente. E, desse montante, boa parte, cerca de 80% (oitenta por cento) quer ser bacharel em direito ou advogado por pensar que essa condição lhes abrirá muitas portas no mercado de trabalho. No máximo 2% (dois por cento) dos estudantes de Direito está na faculdade de direito por vocação, para se aproximar do conceito de justiça. Os demais querem fazer concursos públicos, qualquer concurso que seja, desde que a aprovação possa lhes garantir um bom padrão de vida. A maioria quer fazer qualquer concurso que seja, não para buscar a justiça, mas sim para buscar uma vida econômica melhor, restringindo-se a isso o seu conceito de justiça. Alguns, ao mesmo tempo, desejam ser polícia ou juiz, o que, por si só, diante da natureza de cada uma destas atividades e dentro das perspectivas institucionais atuais de cada um destes setores são atividades absolutamente incompatíveis entre si.

Ao concluírem, aos trancos e barrancos, o curso superior, constatam que adestramento que as instituições de ensino lhes ofereceu não lhes habilita a compreender ou a buscar o conceito de justiça em cada uma das atividades ou carreiras, de Estado ou não, que venham a escolher. Alguns já pensam ser muito tarde para re-aprender, outros nem ao menos se dão conta que no tempo todo em que passaram pela faculdade de direito nunca buscaram saber o que é justiça. Acabam desistindo de procurar a justiça e terminam por se agarrar em dogmas legais e, tal como verdadeiros analfabetos funcionais, não são capazes de compreender o contexto em que deve ser interpretado o mandamento legal. A ?nobreza? dos operadores do direito (magistrados, membros do Ministério Público, Advogados, Procuradores, Delegados e outros não tão ?nobres? assim) é preparada para temer e obedecer cegamente aos dogmas. Forma-se uma casta de covardes, indivíduos submissos à jurisprudência e às súmulas, apologistas da súmula vinculante. São, na acepção mais primitiva do termo, operadores do direito, quando deveriam ser operadores da justiça. São dogmáticos e, por isso cada vez mais se afastam do conceito de justiça. São adestrados, por parte das faculdades de direito para ratificar perspectivas conceituais dogmáticas, o que os afasta cada vez mais da possibilidade de formar um conceito de Justiça.

O ensino jurídico necessita ir além do dogmatismo encarnado no certo e no errado, pois só assim conseguirá se aproximar do conceito de Justiça.

Notas:

(1)     Entendida aí como sendo a manifestação institucional do Poder Judiciário na apreciação jurisdicional dos atos levados à sua apreciação.

(2)     NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm; Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro, tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pág. 7.

(3)     ABBAGNANO, Nicola; Dicionário de Filosofia Tradução da 1.ª edição brasileira coordenada e revista por ALFREDO BOSSI Revisão da tradução e tradução de novos textos IVONE CASTILHO BENEDETTI, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2007, págs. 682/686.

(4)     DESCARTES, René; Discurso do Método Para Bem Conduzir a Própria Razão e Procurar a Verdade nas Ciências, Introdução Gilles-Gaston Granger, prefácio e notas de Gerard Lebrun, Tradução de J. Guinsnurg Granger e Bento Prado Júnior, 4.ª Edição São Paulo, Nova Cultural Os Pensadores, 1987, pág. 29.

(5)     SARTRE, Jean-Paul; L?Exitencialisme est un Humanisme, Tradução de Rita Correia Guedes, Editora Nova Cultural Os Pensadores -, 3.ª Edição, São Paulo, 1987, pág. 6.

(6)     ?Datenizados?, expressão utilizada para designar àqueles que são influenciados pelos conceitos propagados pelo jornalista José Luiz Datena.

Haroldo César Náter é advogado e professor de Direito Processual Penal.

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