Acerca do tráfico internacional de pessoas

Com o advento da Lei 11.106, de 28 de março de 2005, passou a ser tipificado o tráfico internacional de pessoas (art. 231) e tráfico interno de pessoas (art. 231-A).

O tráfico sexual de pessoas, especialmente de mulheres, é um fenômeno crescente, ainda que com determinadas peculiaridades, e, na atualidade, tem sido alvo de constante preocupação da comunidade internacional.

Como bem se assinala, ?a exploração sexual de seres humanos constitui um grave ataque a sua dignidade humana que merece ser combatido em nível máximo com emprego dos instrumentos do Direito Penal é algo compartilhado por todos, mormente quando se trata de exploração infantil. Nesta ordem, a insistência das organizações internacionais em assegurar o êxito da persecução penal estatal, mediante a harmonização das disposições penais e das penas, e o fomento da cooperação (policial e judicial) internacional não apresenta objeção alguma…?.(1)

Assim, essa modalidade de tráfico continua a ter como objeto preferencial mulheres provenientes de países onde imperam a pobreza, a desigualdade social, a discriminação, o desemprego e a droga (tráfico e uso de entorpecentes), como condições de lucratividade do negócio ilícito. Nos últimos tempos, outra peculiaridade desse fenômeno criminal é a sua internacionalização com o envolvimento de organizações criminosas que operam com conexões em vários países. Alude-se sobre a evolução dessa criminalidade que, ?o tráfico de mulheres tem sua origem na exploração econômica da mão de obra feminina e na sexualidade, e se trata de um fenômeno estrutural?. O que talvez só tenha sido alterado, desde de que foi concebido como problema no final do século XIX, vem a ser, na realidade, a condição das mulheres sobre as quais ele recai, visto que ?já não são brancas? senão ?negras? ou, em todo caso, ?provenientes de países que se empobrecem rapidamente, de países em crise econômico-social, sob uma situação política instável ou sob regime ditatorial??.(2)

Nessa perspectiva, tem-se, por exemplo, a denominada Ação Comum relativa à luta contra o tráfico de seres humanos e a exploração sexual de crianças, adotada pelo Conselho da União Européia, em 1997. A diretriz consagrada nesse documento é de que o tráfico de seres humanos e a exploração sexual de crianças constituem um grave atentado contra os direitos fundamentais, especialmente, contra a dignidade humana.

Define-se, genericamente, o tráfico como qualquer conduta que facilite a entrada, o trânsito, a residência ou a saída do território de um Estado membro de seres humanos ou de crianças, com a finalidade de exploração sexual, com a persecução de fins lucrativos. A Assembléia Geral das Nações Unidas se refere ao tráfico de pessoas como sendo ?o movimento ilícito e clandestino de pessoas através das fronteiras nacionais e internacionais (…) com o fim último de forçar mulheres e meninas a situações de opressão e de exploração sexual ou econômica em benefício de proxenetas, traficantes e bandos criminosos organizados, bem como a atividades ilícitas relacionadas com o tráfico de mulheres, como, por exemplo, o trabalho doméstico forçado, os casamentos falsos, os empregos clandestinos e as adoções fraudulentas? (Resolução 49/166).

As novas disposições epigrafadas nos artigos 231 e 231-A do Código Penal brasileiro constituem reflexo desse processo e materializam o aperfeiçoamento da luta contra essa espécie de criminalidade.

Feitas essas considerações, cumpre tecer breves comentos sobre tráfico internacional de pessoas.

Tutela a norma penal incriminadora do artigo 231, caput, a própria condição humana, sua dignidade de pessoa, repudiando-se o vil comércio ou tráfico de pessoas, que são utilizadas como objeto, em geral visando obter compensação econômica, para o exercício da prostituição. A pessoa em geral mulher – aparece como vítima e objeto do tráfico de seres humanos. De outro lado, nos §§ 1.º e 2.º, do citado dispositivo, o bem jurídico protegido vem a ser a liberdade sexual da pessoa lato sensu, inclusive sua integridade e autonomia sexual (autodeterminação sexual), como parte do livre desenvolvimento de sua personalidade.

O sujeito ativo do delito pode ser qualquer pessoa (delito comum). Em geral, a conduta delitiva é praticada através de concurso de agentes ou por associação ou grupo de traficantes. O sujeito passivo pode ser qualquer pessoa, seja do sexo masculino, seja do feminino, e a coletividade internacional.

A conduta reprimida pelo legislador no artigo 231, caput, consiste no fato de o agente promover, intermediar ou facilitar ingresso no território brasileiro de pessoa que venha a exercer a prostituição, ou a saída dele de pessoa que vá exercê-la no estrangeiro.

A ação de promover, que é sinônimo de avançar, executar, diligenciar, dar impulso, fomentar, fazer que se execute, que se ponha em prática, tornar possível a execução de algo, representa uma série de atos perpetrados pelo agente visando conseguir a entrada de pessoa no território nacional ou sua saída para o estrangeiro, para exercer a prostituição.

Intermediar significa interceder, mediar, entremear, interceder, intervir, criar ambiente ou propiciar as condições que possibilitem o tráfico internacional de pessoas (v.g., recrutando, providenciando transporte, fazendo contatos). O intermediário atua fazendo ligação entre pessoas: por exemplo, entre o traficante propriamente dito (aquele que promove) e o terceiro (v.g., pessoa que venha exercer prostituição no território nacional ou que vá exercê-la no estrangeiro, ou, ainda, o eventual contratante que explore a prostituição).

Na ação de facilitar – tornar fácil, proporcionar, favorecer, cooperar – a vítima já deliberou estabelecer-se no estrangeiro, de forma que o agente torna-se seu coadjuvante, concedendo-lhe auxílio para lograr, com maior êxito e comodidade, sua saída ou ingresso no país visado, eliminando eventuais empecilhos ou dificuldades. A atividade do agente, nesse caso, é acessória.

É de notar que a anuência ou o consentimento da vítima não descaracteriza o delito, visto que o caput do artigo em exame não contém essa exigência (tráfico consentido). Além do mais, a coletividade internacional também figura como sujeito passivo.

Demais disso, basta o simples trânsito ou permanência rápida no território nacional para se configurar a infração penal.

Por território nacional entende-se o espaço delimitado sujeito ao poder soberano do Estado. Pode ser: real ou efetivo  superfície terrestre (solo e subsolo), as águas territoriais (fluviais, lacustres, marítimas) e o espaço aéreo correspondente; b) ficto ou por extensão as embarcações e aeronaves, por força de uma ficção jurídica (art. 5.º, §§ 1.º e 2.º, CP). De outro lado, território estrangeiro é o espaço pertencente a outro Estado e sobre o qual exerce sua soberania, e que, tal como o território nacional, está situado dentro de limites geográficos que abrangem tanto o aspecto real como ficto.(3)

É de se ressaltar que o preceito incriminador genericamente considerado não tem por objetivo o exercício da prostituição em si – ressalvada a primeira parte do dispositivo (caput, do 231) que vincula o tráfico ao efetivo exercício da prostituição -, mas sim o tráfico de pessoas, com vistas à prostituição de outrem, embora o tipo legal não faça nenhuma referência ao lucro ou à vantagem patrimonial a ser auferida pelo sujeito ativo, ainda que seja ela quase sempre inerente a essa atividade. Busca-se, na verdade, punir o comércio de seres humanos, no caso para abastecer o mercado da prostituição. A palavra ?prostituição? – elemento normativo extrajurídico pode ser entendida genericamente como o tráfico ou o comércio sexual realizado mediante pagamento ou preço. Integra a prostituição o conceito mais amplo e, por isso, preferível de exploração sexual, que pode incluir outras atividades de natureza sexual. É a exploração sexual conceituada como a ?utilização de uma pessoa para fins sexuais, com ânimo de lucro, atentando direta ou indiretamente contra sua dignidade e liberdade sexual, e afetando potencialmente seu equilíbrio psicosocial?.(4)

O tipo de injusto não requer que a pessoa tenha conduta moral irrepreensível, podendo ser até mesmo pessoa plenamente corrompida ou já prostituída. Não se questiona aspectos de ordem moral, de moralidade pública ou privada.

O tipo subjetivo está representado pelo dolo, vontade livre e consciente de promover, intermediar ou facilitar a entrada no território nacional de pessoa que venha a exercer a prostituição, ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro. Ademais, exige-se, na segunda parte do caput do art. 231 (?ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro?), a presença do elemento subjetivo especial do injusto consistente no propósito de exercício da prostituição. O agente realiza a conduta típica (promove, intermedeia ou facilita) a saída da vítima para exercer a prostituição no exterior (fim transcendente).

Consuma-se o delito, na primeira parte do caput do art. 231 (?a entrada (…) de pessoa que venha a exercer a prostituição?), com o efetivo exercício da prostituição, em regime de habitualidade. Trata-se, nesta modalidade, de delito de resultado e de lesão. De outro lado, na segunda parte do caput do art. 231 (?ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro?), o delito se consuma com a prática de quaisquer uma das condutas ali previstas, não sendo necessário que a vítima venha a exercer a prostituição. Trata-se de delito de mera atividade. O seu efetivo exercício pode caracterizar o mero exaurimento. A tentativa é admitida na primeira hipótese, e, em tese, é inadmissível na segunda.

Caso o agente transite pelo território nacional com a vítima com destino ao meretrício de outro país, estará caracterizado o delito, não só por se tratar de crime internacional, mas também porque, ao passar pelo país, não deixa de promover a saída da vítima para a prática de prostituição em território estrangeiro.(5)

Se o agente leva a vítima de uma região a outra do mesmo país, não se caracteriza o delito em epígrafe, que pressupõe tráfico internacional e não interestadual. Nesse caso, configurado estará o crime do art. 231-A (tráfico interno de pessoas).

As circunstâncias que qualificam o tráfico são as mesmas do artigo 227, ou seja, delito perpetrado contra vítima maior de quatorze e menor de dezoito anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a que esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda (§ 1.º) e emprego de violência, grave ameaça ou fraude (§ 2.º).

Cumpre ainda salientar que de acordo com o artigo 232, as formas qualificadas de lenocínio e de tráfico de pessoas e de presunção de violência são as mesmas enumeradas pelo legislador nos artigos 223 e 224.

A pena prevista para o crime de tráfico internacional de pessoas é de três a oito anos de reclusão, e multa (art. 231, caput). Na forma qualificada, ocorrendo qualquer das hipóteses do artigo 227, parágrafo 1.º, a pena é de quatro a dez anos de reclusão, e multa (art. 231, § 1.º). Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude, a pena é de cinco a doze anos de reclusão, e multa, além das sanções atinentes à violência (art. 231, § 2.º). A ação penal é pública incondicionada.

Notas

(1) DE LA CUESTA ARZAMENDI, José Luis. Las nuevas corrientes internacionales em matéria de persecución de delitos sexuales a la luz de los documentos de organismos internacionales y europeos. In: DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis (Dir.). Delitos contra la libertad sexual. Estudios de Derecho Judicial, Madrid: CGPJ, 1999. v. 21, p. 371.

(2) MAQUEDA ABREU, María Luisa. El tráfico sexual de personas. Valencia: Tirant-lo-blanch, 2001. (Colección los delitos v. 36), p. 17.

(3) Vide PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro. Parte Geral. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2005. v. 1, p. 207.

(4) DE LA CUESTA ARZAMENDI, J.L., op. cit., p. 326.

(5) Cf. NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v. III. p. 282. Contra, sem razão, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Parte Especial. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 74.

Luiz Regis Prado é professor titular de Direito Penal e coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Estadual de Maringá.

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