A vida não é novela

Em novela do horário nobre, roubam embriões humanos de uma clínica, com facilidade espantosa e resultados surpreendentes, para dizer o mínimo. Outra novela não muito remota e de extraordinário sucesso popular trouxe no seu enredo um cientista meio lunático, mas de coração derretido, que produziu uma réplica do galã – réplica esta que só não era cem por cento perfeita porque a versão duplicada de vez em quando apresentava trejeitos esquisitos de andróide. Há quem acredite – com base no que já se assistiu na tevê – que ?barrigas de aluguel? pululam por aí, de forma a que as grávidas por empréstimo possam reforçar os combalidos orçamentos domésticos. Uma seita que se diz uma entidade científica anuncia que já clonou homens e mulheres, escolhidos dentro de critério, ao que consta, de plantel de Jóquei Clube; e estaria guardando tais criaturas numa estufa refrigerada, a fim de se prevenir contra a ameaça muito provável de a humanidade vir, entre atentados terroristas e bombardeios nucleares, a se extinguir sobre a Terra.

A ficção não aspira à verdade, assim como o delírio é só delírio, mas há alguma coisa de perniciosa e mal intencionada na forma como vem se tratando o mais sagrado de todos os assuntos que dizem respeito à condição humana. Refiro-me, é claro, ao tema da vida.

A ciência da embriologia, aliada às pesquisas no campo da genética, vem evoluindo aos saltos, com vertiginosos progressos no que diz respeito à fertilidade, à reprodução e à possibilidade de se flagrar doenças ainda na etapa inicial da concepção. Assim, é até compreensível entender que, na voragem das novidades sempre renovadas, as notícias acabem por induzir mais à confusão do que ao esclarecimento.

A experiência de clonagem terapêutica anunciada recentemente por uma equipe de médicos coreanos é um fato extraordinário – divisor de águas na medicina e na ciência. Consiste, em linhas gerais, na utilização de embriões para criar células tronco, os quais podem vir a substituir sistemas defeituosos no organismo. Estou certo de que este é o caminho para atacar, na raiz, doenças como Alzheimer, Parkinson e diabete, só para citar algumas.

No Brasil, contudo, o tema da clonagem terapêutica entrou numa perigosa zona de sombra, de desinformação e de preconceito. Desconfio que muitas das pessoas envolvidas no debate, de modo trêfego e irracional, andam vendo novelas demais e lendo literatura científica de menos. No momento em que o mundo se ilumina com a descoberta dos cientistas coreanos, nossos parlamentares votam uma lei das trevas, como se desconfiassem que a pesquisa de embriões – sempre com fins terapêuticos, e não de reprodução, insisto – fosse iniciativa de meia dúzia de malucos fascinados pela chance de criar uma super-raça. A lei aprovada é obscura, ambígua e atrasada, para dizer o mínimo.

O que os parlamentares por ora aprovaram não surpreende, porém, no contexto das atitudes que o Brasil oficial exibe quando o assunto é reprodução humana – e, agora, também, como se comporta à frente dos avanços ligados à prevenção, desde a fecundação, de certos males congênitos. Não existem iniciativas públicas relevantes, por exemplo, que assegurem à mulher do patamar inferior da sociedade o direito elementar e constitucional da natalidade. O que se vê, ao contrário, é a reiteração de um apartheid social que, na prática, impede de engravidar a mulher infértil e sem recursos. O sistema público de saúde não reconhece o tratamento de fertilidade como prioridade. Os seguros privados tampouco custeiam a reprodução assistida. Ouve-se aqui e ali o argumento de que os pobres reproduzem como coelhos. Trata-se de uma idéia estatisticamente duvidosa e socialmente injusta.

Uma agenda básica para a democratização da reprodução assistida, no Brasil, deveria começar pelo item informação. Um esforço grande e produtivo se fez em torno do controle da natalidade. Agora é hora de se pensar no outro lado e buscar caminhos para o custeio público do tratamento de fertilidade – que, tendo em vista o altíssimo investimento na pesquisa, pesa no bolso de quem tem pouco. Todos nós temos direito a gerar vida. Conhecer o que a ciência tem a oferecer, de fato e não nas fábulas da telinha, seria um início saudável: uma discussão arejada e à luz do dia, livre da mortalha funesta da ignorância, aqui tão bem disfarçada em convicção religiosa.

Roger Abdelmassih

é médico especialista em reprodução humana, formado pela Unicamp, e autor do livro Tudo por um bebê e do recém-lançado Guia da fertilidade.

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