A solidão da mais alta prateleira

Em obra sobre livros e bibliotecas, encontrei uma poética apreensão do sentido atribuído ao estado e à posição de certos livros de autoria de Lorde Macaulay: ?a poeira e o silêncio da mais alta prateleira?. Pensando em paredes cobertas de volumes, algumas somente alcançáveis por banquetas ou por escadas, e refletindo sobre os conceitos e valores que nos levam a organizar e dispor os livros num lugar determinado, ou em tal ou qual companhia na estante, percebo o quanto de nossas transformações ao longo da vida se refletem nas biblioteca que temos ante os olhos. Como os organizamos? Por assunto, época histórica, cor, coleção, tamanho, importância afetiva? Ao sabor do acaso e do tempo de chegada à nossa leitura?

Em texto anterior, intitulado ?Nas bibliotecas da vida?, já abordei a relação entre nossa história pessoal e profissional e a biblioteca que acumulamos. Hoje, gostaria de convidar o leitor a pensar no exílio a que destinamos os livros de nosso acervo bibliográfico, colocados nos lugares mais inacessíveis aos olhos e às mãos. Não penso num acervo extraordinário, como o de José Mindlin, nem numeroso como o das bibliotecas universitárias ou públicas. Basta haver a necessidade de escolher os livros que ficam à disposição e aqueles que guardamos, ou ocultamos ao olhar, em prateleiras mais altas, em caixas depositadas em sótãos, ou em depósitos pouco freqüentados da casa.

Que livros escolhemos para deixar ao alcance imediato da mão e à localização sem dificuldade do olhar ? Por que relegamos aos cantos da prateleira ou aos lugares de mais dificil acesso este ou aquele volume ? Que critérios definem a visibilidade e a possível leitura, ou releitura, de um volume?

Começo por supor que se encontram acessíveis os livros mais usados e os livros mais amados. Utilidade e amor não estão necessariamente relacionados. No magistério, talvez eles vivam uma relação de constante confronto. Não uso em minhas aulas os textos de que mais gosto ou, em situação mais dramática, os livros que mais uso não são os de que mais gosto. Na primeira situação, vigora a censura de toda ordem (ideológica, moral, pedagógica, estilística). Na segunda, o conflito e o contraste: entre o que ensino e o que me interessa ler há um inescapável e definitivo divórcio. O perfeito casamento da utlidade com o gosto e o amor depende de tantas variáveis quanto qualquer outra relação entre seres humanos. Afinal, o livro também pode ser considerado a partir de metáforas humanizadas: o amigo, o companheiro, o confidente, o vilão, o inimigo.

Além da incompatibilidade, relegamos para a prateleira mais elevada os livros que, um dia, estiveram ao alcance da mão (porque hoje somos leitores diferentes), aqueles que foram um erro de aquisição (mas dos quais não nos apartamos mesmo assim), ou aqueles que, em sua forma menos amorosa, já lemos e em relação aos quais não prevemos nem a mais remota possibilidade de uma nova leitura. Livros que deixaram seu silêncio original, viveram a interpretação de um leitor e voltaram a um silêncio diferente, o do abandono. E lá ficaram, a acumular a poeira do esquecimento e da solidão. Papel desenhado e encadernado, agora inútil e desdenhado.

Gostaria de imaginar para esses livros uma leve esperança: a de que eles tenham sido colocados no espaço menos acessível porque a utilização e a leitura, embora remotas, não são inexistentes. Livros que lá ficam à espera de um tempo de leitura mais propício, que tiveram de ser alçados à última prateleira porque alguns ali precisam estar, em razão de que os outros espaços foram todos sendo preenchidos e que, afastada a intenção do descarte, o leitor saberá como os atingir e ler, no momento em que o desejar, bastando para tanto uma banqueta ou os degraus de uma escada. Caixas e estantes esquecidas, que a iluminação da descoberta do passado pode trazer novamente à luz, como a maravilhosa aventura leitora do protagonista de A misteriosa chama da Rainha Loana, de Umberto Eco. Quais leitores já viveram a emoção de ter novamente nas mãos o volume que marcou a infância, a adolescência, que trouxe um momento de transformação pessoal no passado? Esse novo nascimento do livro, que incendiou a escuridão da memória da leitura antiga, esteve vinculado ao movimento das mãos e dos olhos que limparam a poeira e fizeram falar o livro guardado, até aquele momento silencioso.

?A poeira e o silêncio da mais alta prateleira? não serão assim, sinais de abandono, mas de esperança de um dia essas páginas alçarem vôo das alturas e, como Ícaros menos trágicos, virem cair em mãos e mentes de um leitor, que as abrirá como asas para a jornada do conhecimento e do prazer, e, talvez, da memória adormecida.

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