A reforma da Previdência e os verdadeiros privilegiados

Os dicionários de um modo geral fornecem uma definição clara do termo “privilégio”, que no entanto parece estar fora do alcance de boa parte dos que ousam debater hoje os rumos que deveria tomar o sistema previdenciário. A mais imprecisa das atitudes consiste em não divisar com clareza quais são exatamente os que usufruem hoje de privilégios. Na visão propositadamente distorcida de alguns participantes desse debate, os privilegiados seriam, por exemplo, os servidores públicos, assim tidos até pelos banqueiros, como se os representantes do sistema financeiro pudessem participar de alguma discussão com um mínimo que seja de imparcialidade e de renúncia à única coisa que enxergam à sua frente: o lucro desmedido, pouco importando as conseqüências sociais desse excesso de usura.

Uma rápida radiografia do que ocorre no País hoje deixa evidente quais são os verdadeiros privilegiados. Enquanto os servidores públicos e os trabalhadores da iniciativa privada assistem à corrosão permanente do seu poder de compra, navegando com dificuldade no mar revolto da recessão, do arrocho e, muitas vezes, do subemprego e do desemprego, os bancos exibem a cada ano uma polpuda conta de lucros. Durante a malfadada era FHC, a rentabilidade sobre o patrimônio líquido dessas instituições financeiras cresceu em média 20 por cento ao ano. Para quem não guarda maior intimidade com equações dessa natureza, pode-se resumir em palavras mais simples: a cada ano, os bancos agregam, em termos de lucratividade, um quinto do seu patrimônio líquido. E como se não bastasse – o que já está amplamente comprovado – não pagam impostos como o restante dos mortais, esses mesmos mortais a quem eles chamam de “privilegiados”.

Cálculos feitos pela Anefac (Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade), divulgados recentemente pela imprensa, demonstram que o repasse do aumento da Selic elevaria as taxas cobradas nas linhas de empréstimo pessoal nas financeiras a 325,24% ao ano. O número por si só mostra-se impressionante, mas ainda convém lembrar que recorrem a esse tipo de empréstimo exatamente os consumidores de menor renda. Ou seja, estamos diante de um exemplo clássico de Robin Hood às avessas: tira-se dos pobres para oferecer-se aos ricos com a maior lucratividade possível. Em contrapartida, os brasileiros aparentemente de “maior sorte” que conseguirem livrar algum trocado para colocar na poupança não terão seu “capital” corrigido ao mês em índice suficiente sequer para repor a inflação, o que torna o Brasil possivelmente o único país onde os que poupam perdem dinheiro. E isso quando se sabe que uma das receitas para o crescimento do país é exatamente o incentivo à poupança interna.

O deputado Delfim Neto costuma dizer que dinheiro não some no ar: ele sai de algum lugar e vai para outro lugar. O governo alega que não tem dinheiro. Os trabalhadores seguramente estão com o poder aquisitivo corroído. As empresas estão descapitalizadas. Evidentemente, esse “algum lugar” para onde está indo o dinheiro é facilmente identificável. Assim, os juros e os encargos da dívida previstos na lei orçamentária de 2003 são da ordem de 93,644 bilhões de reais, soma superior aos 92,110 bilhões que foram destinados ao pagamento total de benefícios do INSS em 2002, ou seja, a milhões de pessoas em todo o Brasil. Onde estão os privilegiados?

O pior desse panorama é verificar que toda essa política de arrocho contra a população e de benefícios (privilégios…) ao sistema financeiro como um todo deságuam num grande fiasco, em matéria de resultados. O governo FHC dispôs-se a seguir à risca a cartilha do FMI e não chegou a acumular, nos últimos 3 anos de arrocho fiscal, o suficiente para gerar saldo suficiente em suas finanças públicas para pagar um ano sequer de juros e encargos da dívida. E não há como deixar de mencionar que esse sacrifício todo resultou nas maiores taxas de desemprego da história do País, em arrocho salarial e em juros estratosféricos – pesadelos dos quais ainda estamos longe de nos livrarmos, ao que tudo indica.

Com relação à Seguridade Social, apenas no ano de 2002 o governo deixou de alocar 36 bilhões de reais para programas de saúde, assistência social e previdência, a título de “fabricar” saldo primário para honrar compromissos com credores e FMI. A Seguridade Social vem se transformando, assim, em grande âncora do ajuste fiscal do governo, ou seja, mais um típico Robin Hood às avessas, em prejuízo da população (notadamente a de baixa renda), para privilegiar os ricos, que enxergam “privilégios” onde eles não existem e se esquivam de olhar para o seu próprio quintal.

O governo Lula assumiu dizendo que honraria os compromissos já firmados. Resta saber se, além de honrar os compromissos com os privilegiados bancos – embora a custa do sangue, suor e lágrimas da população – ele irá também honrar, por exemplo, os compromissos com os servidores públicos, que exercem um papel social de alta relevância, mas apesar disso vêm sendo injustamente massacrados por uma campanha difamatória baseada em falsidades, cinismos e injustiças, com efeito autofágico preocupante. Isso porque, num país com demandas sociais crescentes, que estão a exigir um rigoroso aperfeiçoamento e ampliação das políticas públicas de atendimento à população, acaba-se gerando uma criminosa onda de preconceitos que tende a estagnar a ação do Estado e a marginalizar os que efetivamente estão a serviço das demandas sociais, sem a contrapartida da remuneração polpuda das instituições financeiras gananciosas, que torcem o nariz diante da palavra “social”. Está na hora de combater os verdadeiros privilegiados e de dar um basta à hipocrisia reinante.

Rodolfo Fonseca dos Santos

é presidente da Anfip – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social.

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