A proposta de ética complexa de Helios Sarthou

Helios Sarthou é um antigo combatente pela liberdade, igualdade, democracia e justiça. Professor de Direito em Montevidéu, Uruguai, ex-senador da República, se notabilizou pela sua coragem política na luta contra a ditadura militar, pelo seu engajamento social projetado na atividade parlamentar e por seu arraigado compromisso com o Direito e a Justiça.

Seu estudo sobre ?ética simples e ética complexa?, dado a conhecer no site da Associação Latinoamericana dos Advogados Trabalhistas (ALAL) (www.alal.info) permite indispensável atualização no campo dos direitos humanos, face as lições do renomado professor diante da atual conjuntura que, no Uruguai, passa, assim como no Brasil, por uma nova inflexão política com a posse do presidente socialista Tabaré Vázquez. Para Sarthou, pensar o homem é pensar um homem total, não dividido. Ele examina, em seu valioso texto, as diferenciações no exercício profissional do comportamento ético circunscrito a ação específica na relação advogado-cliente, mas vai além, afirmando pela insuficiência desta condição.

Eis as lições de Sarthou que consideramos oportuno divulgar:

(1) ?Ética simples e ética complexa: Sem pretensão dogmática, apenas com caráter experimental com a finalidade deste trabalho, tomamos a ética geral, como o equipamento espiritual do homem, que dá resposta de acordo a seu quadro axiológico pessoal, às sugestões da multirrealidade e das disjuntivas ou desafios emanados continuamente pelo cúmulo vital. Se trata da acumulação vivencial, intelectual e emocional do homem, com a qual afronta os fatos representados pela necessidade de decisão que importa o viver, na base de uma escala de valores que lhe é própria. Sobre esta base, nossa proposta é pensar o homem que exercita uma profissão ou ofício, neste caso a advocacia, como um homem total não dividido, cuja conduta deve estar toda ela iluminada pela ética, não se admitindo um cristal moral para visualizar a conduta no profissional, distinta do social ou de outras relações individuais. O exercício do direito compromete a uma coerência global.

(2) A ética simples: O reducionismo da definição ética, ao que propomos chamar ética simples, forma parte do utilitarismo ideológico que exclui da ação profissional o alcance ético global de luta para a vigência de um direito autêntico e a realização do valor justiça. Com esta canibalização da ética não estamos de acordo. Essa luta maior deixa liberada a vontade de quem queira fazê-lo e não se integra como dever ético. Denominamos ética simples da profissão, neste caso do advogado, as pautas sobre o bem ou o mal que dirigem a relação bilateral como mera prestação de serviço utilitário estabelecida entre o advogado e o ser humano assistido. Em geral se tem abordado, e se aborda, a ética simples como se abrangesse a ética total, que deve alcançar, a nosso juízo, ao operador assessor do direito. Para nós, ao lado dessa ética que denominamos simples, que representa a conduta correta individualizada na assistência pessoal, existe, a nosso juízo, uma ética complexa que não toma ao homem em seu papel meramente assistencial, privado, senão que existe a abertura simultânea de uma janela ineludível até um dever diante da sociedade global. Não como um elemento complementar senão como uma condição essencial da ética do operador do direito. O indiferentismo diante do global de quem se refugia no efêmero individual não pode fundar uma ética válida se aceitamos, como o fazemos, aquele primeiro axioma do imperativo categórico de Kant, quando exigia: ?trabalha como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade na lei universal da natureza?. Como se vê, o tema tem que ver com uma definição mais profunda e substantiva, que é a responsabilidade ética social do homem do direito dentro do sistema.

(3) A solidariedade humana: Também supõe resgatar um conceito lamentavelmente já passado, histórico e especial do século XX, que é o princípio imperativo da solidariedade humana como parte essencial da vida. De algum modo a ética complexa deve implicar um resgate deste generoso ideal do dever da solidariedade, que inclui o dever diante do coletivo, e que promoveram as grandes ideologias sócio-políticas e engendraram, até em sua contradição dialética, a idéia de justiça social à de compromisso na luta pela igualdade, documentada no chamado bloco de constitucionalidade sobre Direitos Humanos, que ingressa no nosso sistema através da extensão do Art. 72 da Constituição. Como em tantos casos neste tempo da teologia do mercado, a que aludía Barbagelata, para definir a ética do homem que opera o direito, é preciso remontar ao retrocesso do pensamento universal, que implica no neoliberalismo e na globalização, que sepultaram o humanismo e a solidariedade no holocausto do mercado e do suposto livre comércio. Há que remontar essa mutação ideológica, e salve-se quem puder, o egoísmo cibernético enlatado na TC e no PC. Geralmente, o tema da ética do advogado tem ficado ancorado nas peripécias concretas da relação advogado-cliente, em conceitos valiosos como honestidade, verdade, honradez, lealdade e dever assistencial, ao redor do vínculo bilateral, inerente à profissão. Essenciais mas não suficientes para a participação na operação justiça e o reconhecimento pleno dos direitos fundamentais.

(4) Um salto ético: Estamos propondo um salto ético até o social, como um fazer não só na luta pelo direito no conflito concreto, senão para a defesa em geral da justiça-verdade e dos direitos fundamentais da pessoa; sem os quais não existe o direito. Diferentemente do expressado, o freqüente é interpretar ao homem profissional liberal como compartimentado, e não como uma totalidade, não como um ser indivisível. Que se o considere respeitoso da ética em sua conduta individual com o assistido, e que ao mesmo tempo se o admita, em outro plano jurídico, posições ideológicas antagônicas com a defesa do direito e dos direitos essenciais da pessoa humana. Poderia ser o exemplo do profissional ético no seu fazer profissional no caso comum individual, mas que defende a manutenção da lei da impunidade; poderia ser com mais clareza a situação dos advogados colaboradores com a ditadura, entre outros casos.

(5) Conteúdos políticos dos direitos humanos: Entendemos que a ética complexa não é fracionável. A interpretação que sustentamos pode merecer o rótulo da pretendida politização e não faltará quem pretenda sustentar que se pode considerar um desvio político esquerdista. Se pretende deste modo consagrar a incongruência de limitar a ética à chamada ética simples já examinada. É bom assinalar, entretanto, que o temido excesso do conteúdo político tem que ver com a partidarização, mas nunca com os conteúdos políticos dos direitos humanos, que constituem base da sociedade e que de alguma maneira marcam nela traços da politização, mas não de partidarização. Politização é etimologicamente derivada de cidade, em grego, ou seja, assuntos da polis, da cidade, de algum modo da cidade.?

?(6) A comutatividade da ética complexa: É válido, a nosso juízo, outro fundamento para esta amplificação da ética profissional. O direito é uma categoria cultural dentro da concepção antropológica da cultura sustentada por Thurwald. Como categoría organizadora da sociedade, o direito tem um elevado papel para cumprir, estruturando a organização social e os direitos dos que se encontram compreendidos nela. Utilizar o direito positivo como um fazer profissional privilegiado, o qual só pode alcançar quem se dote da mesma capacitação, consagra uma exclusividade para cumprir determinado papel em uma sociedade. Não há dúvida que somos os usufrutuários de um monopólio da atividade assessora do direito, cumpridas certas pautas de formação. Esse induvidável privilégio nos impõe, como contribuição compensatória à sociedade, o dever de defender um direito autêntico e um funcionamento justo da sociedade. Os companheiros advogados da Asociación de Abogados Laboralistas de Argentina deram um passo importante, na base da ética complexa a que aludimos, ao utilizar o método popular de protesto do panelaço frente a Suprema Corte daquele país, reclamando a renúncia do presidente, por razões de corrupção. Não é necessário, ainda que seja natural, a ação corporativa, sendo possível conforme o caso a ação individual ou plural. Poderíamos dizer em termos jurídicos que entre o exercício da profissão de direito que nos outorga a comunidade e o dever de defender a ordem jurídica e o sistema de direitos humanos, existe uma espécie de relação de comutatividade tácita com as características do Art. 1.250 do C.C., quando expressa: ?…cada uma das partes se obriga a dar ou fazer uma coisa que se tem como equivalente ao que outra deve dar ou fazer por sua vez?. Entre exemplos possíveis, estamos sustentando em conseqüência um imperativo categórico ético para o laboralista quanto a lutar para que os juízos não configurem, por sua duração, uma virtual denegação de justiça para o penalista, para não diminuir a idade da imputabilidade, para que os estabelecimentos carcerários não sejam uma pós-graduação do delito, para o constitucionalista, e obviamente o jurista de direitos humanos, a anulação da lei inconstitucional de impunidade, entre outros. E na atualidade, e na cúpula do direito se ajusta à ética complexa, a negativa a extraditar aos violadores dos direitos humanos?

(7) A idéia do bem: Estamos baseando-nos para esta concepção de uma ética complexa na integração preceptiva à mesma de ações macrojurídicas por parte do profissional liberal ligadas à idéia do bem em sentido aristotélico, como abstração, ou seja, ao bom como valor para a comunidade. Importa conceber um dever superador da relação pragmática dos interesses concretos da ou das pessoas, para pensar em termos de sociedade. Dizia Aristóteles em sua Moral, diferenciando o bem como idéia do bem disseminado nas coisas ao que denomina bem real: ?A idéia do bem é certa coisa separada, que subsiste por si isoladamente, enquanto que comum e o real de que queremos falar, se encontra em todo o que existe. Esse bem real não é o mesmo que esse outro bem que está separado das coisas. O que está separado e o que por sua natureza subsiste por si mesmo jamais poderá encontrar-se em nenhum dos outros seres?. Filosoficamente nos estamos baseando nesse ideal do bem dever e também no que disse Rebellato, seguindo ao último Marx na interpretação de Dussel, respeito da ética que vincula à idéia de valor. ?O valor pertence ao trabalho vivo porque esta é sua fonte criadora. É incorreto eticamente tudo o que é contrário à dignidade da subjetividade e à corporalidade do trabalhador. Desde este ponto de vista a pobreza e a miséria são realidades antiestéticas.? O homem do direito não pode ser mero espectador da violação dos direitos fundamentais, como o direito à vida que compromete a miséria e a fome, do que fala Rebellato, ou dos demais direitos humanos fundamentais. Temos consciência das dificuldades desta ampliação ética, talvez por duas razões aparentemente antagônicas. A primeira vem por um personagem de Malraux, en L´ Espoir, sobre a definição do intelectual frente às idéias absolutas do bem e do mal, que diz: ?… o intelectual no sentido amplo do que é o profissional liberal é o grande antimaniqueísta por definição, vale dizer, um grande resistente aos extremos do bem e do mal?. É difícil ajustar a conduta à idéia de bem absoluto se se começa por resistir à identidade desses contrários éticos exacerbando a cultura dos matizes que fomenta a transacionalidade do oficio do advogado. E a segunda é a compartimentação a que nos temos acostumado: o direito contencioso no escritório, a ideología no partido, os direitos fundamentais na cátedra, etc. mas nunca tudo e todos.

Por último, introduzir a filosofia da conduta de um humanismo, que supere aos interesses concretos do assunto e imponha o imperativo categórico da luta pelo direito global e o consagrado no bloco da constitucionalidade como dever ético, pode entender-se como uma utopia.

Dizia Helder Câmara: ?Caminhar sozinho é possível, mas o bom peregrino sabe que o caminho é longo e requer companheiros?.

Tempo virá, se queremos conseguir uma democracia inclusiva, no dizer de Fotopoulos, que a idéia da cidadania social imporá ao agente individual do direito nos Códigos de ética, a harmônica e simultânea responsabilidade, e a preceptividade, de defender um direito a uma sociedade antropocêntrica e justa, como contrapartida ineludível da assunção da profissionalidade jurídica.?

(Notas: 1. Cuvillier, Moral, Pág. 80; 2. Mario Guilli y Cintia Vázquez, El hombre nuevo, Buenos Aires, 2.000, Ediciones Sexta Tesis, Pág. 47; 3. Héctor Hugo Barbagelata, El particularismo del Derecho del Trabajo, Montevideo, 1995, F.C.U. 4. Aristóteles, Moral, Espasa Calpe, Colección Austral, Montevideo, Pág. 27; 5. José Luis Rebellato, La encrucijada de la Etica, Montevideo 1995, Pág. 160) (Fonte: Boletim Eletrônico de aula n.º 2).

Edésio Passos é advogado e ex-deputado federal (PT/PR). E-mail: edesiopassos@terra.com.br

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