A pobreza como perda

Francis Scott Fitzgerald (1896-1940) é sempre citado como um dos melhores autores norte-americanos do período que Gertrude Stein chamou de geração perdida (os anos 20), quando uma leva de jovens candidatos à glória literária procurou aninhar-se nos braços acolhedores de Paris, mais que nunca, a Cidade Luz. São dessa época, entre outros, Ernest Hemingway, Henri Miller, Ford Maddox Ford, que de certa maneira conviveram como maior de todos, o irlandês James Joyce. Diz-se que naqueles idos alguém podia passar um mês na capital francesa com 20 dólares.

Começo citando Fitzgerald, pelo fato de ele próprio ter nascido numa família da alta classe média da Nova Inglaterra, nordeste dos Estados Unidos, onde até hoje vive a burguesia endinheirada (os Kennedy e outras famílias que realmente influem nas finanças e na política são de lá). E também porque retratou como nenhum outro o estilo de vida dos multimilionários, em inesquecíveis romances como Este lado do paraíso, Belos e malditos, O último magnata e, particularmente, em Contos da Era do Jazz.

Um jornal paulista estará vendendo junto com a edição dominical uma coleção de romances que Carlos Heitor Cony acha os mais expressivos da literatura do século XX. Modestamente discordo, em parte, da avaliação, mas isso são outros quinhentos. Dia desses foi distribuído O grande Gatsby, que a Civilização Brasileira havia lançado nos anos 60 com tradução de Brenno Silveira, no qual Fitzgerald narra o esnobismo perdulário de que era capaz uma parcela da sociedade. A nota triste da história desse notável escritor é que tanto ele como a mulher – Zelda – tiveram morte precoce, ele literalmente encharcado de uísque e ela vitimada por degenerativa doença mental.

É tempo de justificar porque Fitzgerald veio aportar nessas maltraçadas, ele que teve o privilégio da abastança até afastar-se da família para se tornar escritor. Em quase tudo que escreveu, o tema é o fausto não raro ofensivo e irresponsável que o dinheiro compra, aqui lembrado para contrastar o estado de miséria em que vivem milhões de patrícios, dos quais dois milhões são habitantes do Paraná.

O romance sobre felicíssimos argentários, ambientado na sofisticada e elegante Long Island, por via transversa me remete ao colunismo social, onipresente em nosso meio. A leitura desse noticiário, às vezes, fútil e vazio, as fotos de festas cienematográficas, as caras radiantes ali exibidas, fazem qualquer mortal supor que tais pessoas, de fato, vivem em outra galáxia. Contudo, nas grandes e médias cidades desse País, a distância que separa as mansões dos barracos periféricos é ínfima, embora entre uma e outra margem do cenário erga-se uma indevassável barreira social.

Algumas pessoas da margem nobre são como o Tom Buchanan, personagem síntese da narrativa de Fitzgerald, tão rico que faz os outros perderem o fôlego, capaz de numa tacada comprar um lote inteiro de cavalos de pólo. Carraway, espécie de narrador da história, exclama: “Era-me difícil compreender como é que um homem de minha própria geração era suficientemente rico para fazer tal coisa”. A sutileza está na indulgência irônica de Fitzgerald, dada a sua intimidade com a opulência dos ricaços.

De qualquer forma, o sentimento de Carraway acaba sendo o mesmo do leitor de hoje, que também não alcança compreender como as figuras recorrentes das colunas sociais parecem eternamente imunes à crise, regaladas numa interminável sucessão de festas.

Fitzgerald nos diz como pensavam os ricos daquele tempo (o romance saiu em 1935). A mulher de Tom, Daisy, mesmo que o enchesse de chifres, achava o marido uma sumidade, afinal ele lia livros profundos. Tom argumentava que tal era imprescindível para estar preparado e, ora essa, para ocupar o lugar certo na pirâmide. “Compete a nós, que pertencemos à raça dominante, estar atentos; do contrário, essas outras raças dominarão o mundo.” Qualquer semelhança com o que se pensa atualmente em certas rodas não é necessariamente mera coincidência.

Havia de ser um escritor excomungado do ambiente literário de seu tempo, o maldito Georges Bataille, no livro A noção de despesa, o autor do pensamento mais abarcante sobre a hipoteca que pesa sobre os muito ricos em seu relacionamento com os miseráveis: “Assim, a despesa, embora seja uma função social, desemboca imediatamente em um ato agonístico de separação, de aparência anti-social. O homem rico consome a perda do homem pobre, criando para este uma categoria de desgraça e de abjeção que abre o caminho para a escravidão”.

Aventurando-se no terreno cediço da economia, Bataille encarregou-se de “colocar às avessas” a moral corrente, na medida que “suas concepções apresentam-se como uma inversão do pensamento econômico comum”, disse com acerto, Jean Piel, na introdução do livro que também traz o ensaio A parte maldita (Imago, RJ, 1975).

Muitos gostariam de ter argumentos para discordar desse pensador que chocou os meios cultos de uma Europa estilhaçada por conflito ainda recente, cuja possibilidade de repetição não era de todo impossível. Na verdade, Bataille pressentia essa hipotética conflagração, logicamente expressando-a nos termos então dominados pela intelectualidade e à luz do Plano Marshall. É rigorosamente lógica a sua observação: “Todavia, não vemos bem o que uma terceira guerra nos traria, a não ser a irremediável redução do globo ao estado da Alemanha em 1945”.

Basta de pessimismo. Volto ao clima da manducação denunciada por Bataille, embora prefira apresentá-la sob a ótica estonteante de Fitzgerald. O exemplo é o casamento apoteótico de Tom e Daisy, uma das melhores passagens do Gatsby. “O noivo chegou acompanhado de cem convidados, em quatro vagões especiais, e alugou todo um andar no Muhlbach Hotel e, na véspera do enlace, deu-lhe um colar de pérolas avaliado em trezentos e cinqüenta mil dólares”.

Tom e Daisy formavam o par perfeito dos anos loucos, quando começavam a despontar entre homens e mulheres que buscavam o exercício da liberdade, os indícios do existencialismo, do amor livre, do culto ao corpo, do alcoolismo e das drogas. Carraway/Fitzgerald não se deixa embair pelo emocionalismo e cumpre fielmente o dever de revelar a verdade, mesmo que ela seja cruel. O derradeiro flagrante de Tom e sua mulher desnuda-os como seres iguais a tantos outros da vida real que “destruíam coisas e pessoas e, depois se refugiavam em seu dinheiro ou em sua indiferença”, sem o menor sinal de escrúpulo provinciano. Essa passagem me leva a supor que o sentimento de desprezo pelo semelhante é muito mais destrutivo do que, propriamente, a guerra e, decerto Bataille também o percebeu.

Se a ficção de Fitzgerald tivesse algo a ver com alguns brasileiros vivos, do grand monde, é claro, seus nomes haveriam de constar da relação dos proprietários dos trinta bilhões de dólares depositados em bancos estrangeiros.

Sorry, periferia!

Ivan Schmidt

é escritor e jornalista.

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