A OAB e o TCU

A Ordem dos Advogados do Brasil precisa ou não ter suas contas aprovadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU)? Essa questão antiga voltou à tona nos últimos tempos e está a merecer um definitivo esclarecimento. Afinal de contas, a entidade não pode deixar nenhuma dúvida a respeito de sua atuação perante a sociedade. Entremos na análise da questão. Para começar, lembro que há princípios fundamentais abrigados nas seguidas Constituições democráticas brasileiras que devem ser rigorosamente respeitados, para se ter um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Dentre esses princípios, as Constituições brasileiras têm inserido o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Nem a lei e nem mesmo o constituinte derivado podem prejudicar tais direitos fundamentais.

Dentro dessa ótica, a matéria posta perante o TCU – submissão da OAB àquela corte de contas – estava, como está, sob o manto da coisa julgada. Nesse sentido, manifestaram-se e vêm se manifestando os mais proeminentes juristas deste País. O ministro Ubiratan Aguiar, relator do processo, em determinado momento, se amparou em profundo, fundamentado e irrespondível relatório para demonstrar, às escâncaras, que se tratava de matéria vencida.

Depois de mais de dez anos de vigência da atual Constituição, retornou à análise da corte, sem que tivesse havido, ao longo dos mais de 70 anos de vida da OAB, nenhuma alteração sobre os motivos que fundamentaram o julgamento da década de 50. Naquela ocasião, o Poder Judiciário, após ampla discussão, julgou descabida a vinculação da OAB à obrigação de prestar contas ao TCU. A pretensão, que se julgou agora, é a mesma; as partes são as mesmas; as razões da exigência que se faz continuam sendo as mesmas.

O que se pretendeu no processo atual, sem que houvesse razão plausível para tanto, foi simplesmente rediscutir a decisão judicial de 1951, transitada em julgado. O respeito à coisa julgada, por força constitucional, tem por objetivo a segurança jurídica da sociedade, sem a qual inexiste a paz social, estiolando-se os princípios democráticos. Como diz o mestre constitucionalista José Afonso da Silva, qualquer ato normativo ou judicial que se aplique em caráter retroativo, para atingir a coisa julgada, é repugnante “porque fere situações jurídicas que já se tinham por consolidadas no tempo, e esta é uma das fontes principais de segurança do homem na terra” (“Dicionário de Direito Constitucional”, 1994, p. 43).

A indagação que, agora, fica no ar é: por que, depois de meio século de uma situação jurídica consolidada e após dez anos de vigência da Constituição de 1988, a Procuradoria Geral do TCU, mesmo contra pareceres da Unidade Técnica da referida corte, tenta reavivar tal matéria? Qual a razão? A perplexidade da ausência de um motivo jurídico sério revela-se ainda mais acentuada, ao se saber que o próprio TCU, recentemente, baixou a Instrução Normativa 042, de 3/6/02, estabelecendo que “as entidades de fiscalização do exercício profissional estão dispensadas de apresentar a prestação de contas anual ao tribunal, sem prejuízo da manutenção das demais formas de fiscalização”.

Há mais: a Lei 8.906, de 4/7/94, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a OAB, além de evidenciar que a Ordem não é uma simples entidade de fiscalização do exercício profissional, possuindo relevantes finalidades institucionais que a tornam a vanguardeira na defesa da sociedade, especialmente contra os detentores do poder público, declara, de forma expressa, a total independência da OAB em face do poder estatal.

Ressalte-se que a situação jurídica da OAB é peculiar, como reconhecido, de longa data, pelo Judiciário e pelas lições dos mais consagrados mestres de direito. A Ordem, diferentemente dos demais conselhos e entidades sindicais, detém um conceito constitucional e legal mais amplo, ultrapassando a condição de mero ente de fiscalização profissional. Sua atividade institucional e os misteres constitucionais que lhe são outorgados impõem sua desvinculação dos órgãos da administração pública.

Informe-se, porém, que a OAB está sujeita, nos termos da lei, a normas específicas no que tange à prestação de suas contas. É tão rigoroso esse procedimento que a simples rejeição episódica das contas de um seu dirigente acarreta a ele a pena definitiva de sua exclusão dos quadros diretivos da entidade, tornando-o inelegível a qualquer um de seus cargos, sem prejuízo de outras medidas cabíveis em cada caso, até de natureza penal.

A OAB não tem nada a temer nem quer refresco. Quer a manutenção dos princípios básicos, fundamentais, da Constituição; defende o cumprimento da norma positiva constante de lei vigente; quer respeito à sua trajetória democrática para, com independência, agir como sempre tem agido na defesa da sociedade. As contas da Ordem estão à disposição de todos. Nada há a ocultar. Mas, como foi dito, a OAB não abre mão de sua independência da administração pública. Só assim, ela poderá preservar a sua grandeza cívica e a sua identidade, mantendo a posição de entidade civil de maior respeito no País. Sua livre expressão lhe permite falar, sem censura e patrocínio, em defesa da sociedade brasileira.

Rubens Approbato Machado é presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.

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