A literatura enquanto abrigo político

Quero hoje tratar de um assunto que tem tornado as páginas dos jornais um vasto panorama de horrores e de utopias fracassadas. A política. Palavra nascida de pólis, a cidade-estado grega, ampliada para o sentido de estado ou sociedade quando tomada especialmente no que respeita ao senso de comunidade. Atualmente usada mais naquilo que diz respeito à arte ou ciência de governar. Palavra. Tomada de assalto pelo uso que privilegia o significado de ?arte de guiar ou influenciar o modo de governar pela organização de um partido, pela influência de opinião pública, pela aliciação de eleitores?, pela unção de determinadas pessoas em mandantes na condução dos negócios políticos. Mas que também significa ?delicadeza, cortesia, urbanidade?, como também seu contrário, ?astúcia, maquiavelismo?. Essa palavra plural não é propriedade apenas de políticos e urbanóides. A literatura, enquanto representação do real, não se omitiu, ao longo da história, em registrar de maneira ficcional toda essa conduta, essencial para o desvendamento das pessoas e da sociedade.

Em tempo, não invento significados para o termo. Sirvo-me do livro que administra e corrige a ignorância semântica: o dicionário, em especial o do Houaiss.

Tratava eu da literatura e sua relação com a política. Visitei em pesquisa as estantes de minha pequena biblioteca. Na memória, alguns títulos e autores. A eles fui diretamente. Mas à medida que os dedos corriam pelos livros, fui tomada pela alegre constatação de que a escolha se tornava cada vez mais difícil, porque os textos, por denúncia ou por ocultamento, eram todos políticos: tratavam dos ?negócios políticos?, da sociedade enquanto governável, de seres que se outorgavam o direito de governar, das palavras que, proferidas em situação de poder, influenciavam pessoas a obedecer ou a se revoltar.

A idéia inicial de escolher alguns títulos se transformou na constatação de que poderia baixar a quase totalidade dos livros das estantes e neles eu encontraria exemplos de como a literatura trata dos assuntos políticos. Da política individual à social, do governo democrático à tirania, dos assuntos que dizem respeito à conduta em sociedade e da astúcia dos homens para obter mais poder.

Como não posso, neste espaço, estender o assunto ao infinito, obriguei-me a uma seleção que obedece ao mais estrito sentido do termo arbitrariedade  e de manifestação do gosto pessoal. Meus poucos e pacientes leitores poderão agregar centenas, milhares de outros títulos e autores. Convido-os a fazê-lo, lendo esses textos, escrevendo sobre eles, meditando a partir deles em nossa situação enquanto povo, e a nação que queremos construir.

Escolhi primeiramente uma obra de profunda significação para os leitores de minha geração: Quarup, de Antônio Callado, obra de 1967. Nela, o padre Fernando (Nando) vive a epifania da descoberta de sua qualidade humana e de sua representatividade política ante o povo mais excluído. É a trajetória da consciência social, o conhecimento dos meandros da política partidária e oficial e a opção pela participação efetiva, pela luta por idéias e ideais fora dos padrões cínicos e maquiavélicos reinantes.

Um segundo texto, diferente no modo de representar a realidade, mas igualmente importante para tratar da política e da pólis é Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, um clássico de nossa literatura fantástica. Em plena ditadura militar, em 1971, ergue-se a escrita desse gaúcho extraordinário para desvendar os comportamentos da cidade inventada de Antares, que não difere da maior parte das cidades brasileiras. Seus habitantes somos nós, até hoje. Toda a hipocrisia e desumanidade, toda a ânsia de poder e de mando revelada em praça pública pelos inatingíveis defuntos revoltados. O humor negro e a crítica social fazem do texto um manifesto sempre vivo de como a sociedade apodrece em vida quando edificada sobre a hipocrisia.

Como esquecer da personagem política mais famosa deste país, Odorico Paraguaçu, ?herói de nossa gente?, criação satírica de Dias Gomes e que em 1983 saiu das páginas da peça teatral para se converter em contos deliciosos, como os que estão em Odorico na cabeça. São textos que ?só doem quando rio?. O riso que provocam traz a consciência de uma história política de alienação e currais eleitorais. A Sucupira que representa nossa histórica trajetória de horrores e mandonismo.

Nem mesmo a literatura infantil se omite dessa representação dos sentidos vários da palavra política. Ruth Rocha inaugura a fase mais política da literatura para crianças com O reizinho mandão, retomando ?A roupa do Imperador?, do genial Andersen, e situando a história num período de nossa história que, se pudéssemos, colocaríamos sob uma tarja em que se lê: ?Pule esta parte, dói demais?.

Em 1988, quando no Brasil algumas pessoas discutiam uma nova Constituição, preocupadas com assuntos e leis que afetariam (como realmente o fazem as constituições) as relações sociais e as definições políticas, Bartolomeu Campos Queirós escreveu Correspondência, livro maravilhoso de cartas entre crianças que enviam umas às outras palavras do mais profundo significado social: ?pátria, trabalho, justiça, livre, irmão, igualdade?.

Tempos que foram difíceis. Tempos de morte e ressurreição. Mas não tempos para esquecer. Nem as pessoas a isso se permitem: de repente encontro na estante um texto mais recente. Cláudio Martins publicou, em 2004, Abaixo a ditadura!. Um relato crítico e satírico sobre aquela, a mesma, a nossa. Uma visão inteligente, num texto cômico-sério, sobre esse período de nossa história, tratado pela ótica de uma família, vítima da arbitrariedade político-militar.

Como disse lá em cima: esse assunto vem de longe e vai para muito além de nós. Em tempos de decisões, a literatura continua sendo o remédio indicado para doenças de indecisão.

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