A lei da Super-Receita e o reconhecimento da relação de emprego

O Projeto de Lei n.º 6.272-E, de 2005, teve sua redação final (vide em www.diap.org.br) aprovada pela Câmara dos Deputados (13.02.07), dispondo sobre a Administração Tributária Federal, criando a Secretaria da Receita Federal do Brasil, órgão da administração direta subordinado ao Ministro da Fazenda. Além das competências definidas pela atual legislação, ao novo organismo caberá ?planejar, executar, acompanhar e avaliar as atividades relativas à tributação, fiscalização, arrecadação, cobrança e recolhimento das contribuições sociais… e das contribuições instituídas a título de substituição?. Trata-se de evidente avanço a unificação da ação fiscal da Receita Federal e do INSS, desburocratizando a relação entre os órgãos da fiscalização e os contribuintes. Também cria a carreira de Auditoria da Receita Federal do Brasil, sendo uma das atribuições ?examinar a contabilidade de sociedades empresariais, empresários, órgãos, entidades, fundos e demais contribuintes, não se lhes aplicando as restrições previstas nos arts. 1.190 a 1.192 do Código Civil e observado o disposto no art.1.193 do mesmo diploma legal?.

Emenda causa controvérsia

Mas emenda aprovada (por 304 votos a favor e 146 contra) relativa às atribuições do auditor-fiscal da receita federal do Brasil, limitando o poder de fiscalização, vem sendo ora analisada como parte da precarização do trabalho e derivada da pressão de organizações empresariais, ora como necessária às atuais necessidades do processo de inserção das pessoas no mundo globalizado. A emenda, agora artigo do projeto-de-lei, tem a seguinte redação: ?No exercício das atribuições da autoridade fiscal de que trata esta Lei, a desconsideração da pessoa, ato ou negócio jurídico que implique reconhecimento da relação de trabalho, com ou sem vínculo empregatício, deverá sempre ser precedida de decisão judicial?. No seu parecer, o relator do projeto de lei, o deputado Pedro Novais, justifica a aceitação da emenda: ?Nos países avançados, a legislação trabalhista é quase sempre extremamente liberal. O relacionamento diferenciado entre patrões e empregados se verifica, como no Japão, não por força do ordenamento jurídico, mas em decorrência de costumes solidamente arraigados no seio da população. Na opinião da relatoria, o Estado não pode substituir a vontade do profissional que se lança ao mercado de trabalho sob o guarda-chuva de empresa individual. Cabe a ele, e não à fiscalização estatal, emitir juízo de valor a respeito, salvo em situações extremas, nas quais de fato é necessária a intervenção do poder de polícia estatal. A excepcionalidade de situações como essa de fato necessita, para não se banalizar, do prévio crivo de autoridade judicial. A emenda merece, pois, pleno acolhimento?. Na prática, a fiscalização poderá constatar a existência da ilegalidade na situação jurídica do trabalhador, mas dependerá, para a sanção administrativa, de decisão judicial sobre a pessoa, ato ou negócio jurídico atacado como fraudulento à legislação do trabalho. O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) Walter Nunes da Silva Junior, interpreta a norma aprovada: ?Em outras palavras, diz o texto aprovado pelo Legislativo que servidores concursados, capacitados e treinados para verificar ilegalidades ou descumprimento da relação trabalhista, com atribuições de imediatamente tomar as medidas cabíveis para a pronta regularização, de modo a resguardar o mínimo respeito aos trabalhadores e à legislação trabalhista, não mais poderão exercer esse mister? (in ?Super-Receita é retrocesso no combate ao trabalho escravo?, Consultor Jurídico, 23.02.07).

Afronta a princípios democráticos

A advogada Maria da Consolação Vegi da Conceição, ao analisar o texto da emenda, acentua:? Diga-se com toda a ênfase que a Emenda n.º 3 do Projeto de Lei n.º 6.272 constitui-se em verdadeira afronta aos princípios de um Estado Democrático de Direito, que tem como um dos fundamentos os valores sociais do trabalho. Pergunta-se: como tais valores poderão ser exercidos plenamente se o Estado deixa de ter o poder coercitivo de fazer cumprir a lei? A Constituição Federal (CF) determina que compete à União organizar, manter e executar a inspeção do trabalho (art.21, inciso XXIV). Além disso, a ordem econômica está fundamentada na valorização do trabalho humano, cabendo ao Estado, como agente normativo e regulador, as funções de fiscalização da atividade econômica (art.170 e 174 da CF)? (in ?A Emenda n.º 3 do projeto de lei da Super-Receita e as tentativas de legitimação do ?trabalhador-PJ??, Jus Navigandi, 21.02.07)

Reação das entidades

As Centrais Sindicais, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, a Comissão Pastoral da Terra e as entidades representativas dos advogados, magistrados, procuradores e auditores-fiscais do trabalho, protestaram contra a emenda aprovada e pressionam o Ministro do Trabalho para indicar o veto ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essas entidades, em nota afirmam que ?a emenda condiciona a atuação fiscalizadora do Ministério do Trabalho, quando constatada a relação de trabalho fraudulenta, ao prévio exame da Justiça do Trabalho. Essa normal legal retira do trabalhador o direito de ser protegido pelo Estado contra a prática de contratação sob formas precarizantes, disfarçadas de trabalho autônomo, eventual ou sem vínculo de emprego… O efeito prático será, de imediato, a suspensão de toda legislação que protege o empregado. Isso porque, todo o ato praticado pelo empregador terá validade jurídica, mesmo que contrário aos princípios básicos do direito trabalhista…A medida prevê o afastamento de qualquer agente estatal, deixando a possível sanção apenas após provimento judicial que venha reconhecer o trabalhador como empregado. Na prática, todo e qualquer empregador poderá trocar os empregados por autônomos e ter o direito de não sofrer qualquer ação administrativa do Estado brasileiro. Assim, não haverá como exigir férias, FGTS, 13.º salário, normas de segurança e saúde, pagamento das horas-extras, aposentadoria, licença-maternidade, entre outros?.

Inconstitucionalidade

Em ofício dirigido ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva o juiz federal Walter Nunes da Silva Junior, em nome da Ajufe, solicita o veto à emenda e acentua: ?Em situação de ilegalidade, notadamente de não cumprimento da legislação trabalhista, os auditores fiscais do trabalho, no exercício regular de suas atividades, não poderão assim reconhecê-la de pronto, nem tomar as providências imediatas para regularizá-la e muito menos impor as penalidades cabíveis (administrativas, fiscais, cíveis e até penais). Somente o Judiciário, quando provocado, é que poderá concluir pela existência ou não da relação de trabalho, com ou sem vínculo empregatício com conseqüente supressão do poder de polícia administrativo, justamente em área na qual se mostra mais necessária a fiscalização. Com isso, fere-se a Constituição Federal, ao vedar a fiscalização de empresas, notadamente as que recrutam mão de obra na zona rural, por órgãos administrativos criados, estruturados e com empregados treinados para impor o cumprimento das obrigações trabalhistas. Também reduz-se praticamente a zero todo o esforço despendido no combate ao malfadado, indigno e inaceitável trabalho escravo? (Consultor Jurídico, 14.02.07).

Compromisso do Ministro do Trabalho

O jornalista e editor da revista Debate Sindical Altamiro Borges, relata aspectos do movimento pelo veto à emenda: ?A aprovação da emenda número 3 na Câmara Federal gerou imediata e dura reação das centrais sindicais e de deputados de esquerda. Um abaixo-assinado com 62 nomes, pedindo a anulação da medida, foi entregue ao ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que se comprometeu a solicitar seu veto. Ele reconheceu que ?a emenda é um retrocesso nas relações entre o capital e o trabalho? e garantiu: ?Não permitiremos que seja sancionada e vamos recomendar o veto do presidente?. Conforme relato da deputada Jô Moraes (PCdoB-MG), que participou da audiência, a votação da emenda foi precedida de intensa pressão dos lobbies patronais. ?Houve grande mobilização deste setor na defesa desta medida de precarização?. Durante a audiência também foi denunciado o seu impacto junto aos trabalhadores rurais ao emperrar a fiscalização nos casos de trabalho escravo. Em geral, quando os fiscais encontram trabalhadores em situação irregular, o fazendeiro alega manter relações com intermediários, os gatos, para fugir de suas responsabilidades trabalhistas. O juiz federal Marcus Orione, chefe do Departamento de Direito do Trabalho da USP, reforça este temor. Para ele, a emenda ?quebra um pilar da atual política de combate ao trabalho escravo, já que o fiscal não poderá tomar qualquer medida imediata contra a ausência de relações de emprego?. No mesmo rumo, Nicolao Dino, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, prevê que ?haverá reflexos negativos em várias áreas onde a fiscalização se mostra vital, como, por exemplo, no combate ao trabalho escravo? (in ?Super-Receita precariza o trabalho?, texto para divulgação).

Justificativa parlamentar

O jornalista da Carta Maior em Brasília Nelson Breve relata aspectos da votação na Câmara dos Deputados, apresentando a justificativa de parlamentares que votaram pela aprovação da emenda, os deputados Márcio França (PSB.SP) e Miro Teixeira (PDT.RJ): ?Márcio e Miro têm explicações semelhantes…Dizem que a origem da flexibilização não estava no projeto da Super-Receita e sim na MP do Bem, aprovada em outubro de 2005. Miro lembra que foi contra a aprovação do artigo 129, que permitiu a contratação de prestadores de ?serviços intelectuais? como pessoas jurídicas, mesmo quando a natureza do trabalho caracterize vínculo empregatício (caso de advogados, protéticos, jornalistas etc). Márcio critica o governo por não ter regulamentado esse artigo até hoje, para esclarecer qual o tipo de ?serviço intelectual? pode ser exercido por uma empresa individual. Os dois argumentam que essa interpretação não pode ficar por conta de fiscais, que já teriam desconstituído cerca de 30 mil empresas desse tipo no ano passado. Acreditam que o órgão competente para isso é o Ministério Público. Miro sustenta que essa flexibilização não é contra os trabalhadores, porque muitos garotos que estão saindo da universidade, hoje, só encontram emprego assim?. No mesmo texto, Nelson Breve coloca a argumentação do deputado Fernando Gabeira (PV.RJ) que votou pela aprovação da emenda: ?Para ele, a votação da emenda confrontou duas éticas: de um lado, os que defendem os trabalhadores, de outro, os defensores dos que querem trabalhar. Ressalvando a necessidade de uma regulamentação que resguarde o combate ao trabalho escravo, que poderia ficar comprometido com a flexibilização, Gabeira diz que é preciso compreender que nem todos querem ser trabalhadores. Ele acredita que a esquerda moderna é a que procura adaptar o país ao processo de globalização. ?Se você for manter as posições clássicas da esquerda no mundo, hoje, a tendência é você ser engolido?, sustenta o deputado verde? (Nelson Breve, no site de Carta Maior, 16.02.07).

Edésio Passos é advogado e ex-deputado federal (PT.PR). E.mail: edesiopassos@terra.com.br

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