A Lei da Anistia e a Constituição de 1988

Infelizmente, os brasileiros viveram anos muito difíceis nas duas décadas que se seguiram à Revolução de 1964, quando os militares de então tomaram o poder. Eram tempos de inconciliável divergência política entre militares e militantes ditos de esquerda, que gerou luta armada em todo o país, com mortes, torturas, desaparecimentos, seqüestros e roubos, além de outros crimes. Foi uma época em que o povo vivia absolutamente amedrontado e reprimido. Eram os chamados “anos de chumbo”.

Nesse lamentável cenário, é evidente que ambos os lados acabaram cometendo excessos. Tanto militares e seus aliados, sob o pretexto de defender a ordem então vigente, como militantes de diversos grupos subversivos que pretendiam aqueles fora do poder, cometeram atos rechaçados pela ordem jurídica.

Todavia, em 1979, com o fim de selar uma “reconciliação nacional”, governo e Congresso Nacional fizeram editar a Lei n.º 6.833, que ficou conhecida como a Lei da Anistia, uma vez que promoveu o perdão dos “crimes” cometidos no período da ditadura por ambos referidos lados. Com isso foi restabelecida a plenitude dos direitos civis e possibilitado o retorno ao país de muitos exilados e banidos, com vários deles, posteriormente, vindo a ocupar relevantes postos no cenário nacional. Foi o início do processo de redemocratização do país, cujo ápice ocorreu em 1988, com a promulgação da Constituição Federal.

Pois bem, sem embargo disso, certo é que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ingressou no último dia 21, perante o Supremo Tribunal Federal (STF), com uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) em face da Lei da Anistia. Dita ação, prevista no artigo 102, § 1.º, da Constituição e disciplinada pela Lei n.º 8.992/99, protocolizada como ADPF n.º 153 no STF, tem por finalidade obter uma “interpretação conforme à Constituição, de modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos e conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964/1985)”. Em outras palavras, pretende-se por essa ADPF obter uma clara interpretação do STF quanto ao alcance da anistia concedida aos representantes do Estado (militares e policiais) que torturaram durante a ditadura.

A OAB entende que o perdão da tortura é incompatível com a atual ordem constitucional, já que esse ato desumano restou categorizado como insuscetível de anistia pela Lei Fundamental vigente (art. 5.º, XLIII). Trata-se, aliás, de previsão que guarda harmonia com a Declaração Universal dos Direito Humanos, que também a rechaça a tortura. Além disso, acredita a OAB que os agentes do Estado não praticaram crimes políticos, mas sim crimes comuns.

Sem dúvida, o tema é delicado e relevante, independentemente do ângulo pelo qual seja apreciado (jurídico, político, ético etc.). Contudo, por mais que se pretenda esquecer tão triste período, parece pairar sobre nós uma sensação de que ainda há uma conta não paga à sociedade. Isso provavelmente porque o próprio Estado, que deveria proteger os indivíduos, militantes ou não, acabou exorbitando na repressão e, deliberadamente, afrontou princípios fundamentais como o da dignidade humana. Todavia, apesar da gravidade dessa conduta, nada aconteceu. Esse é, com certeza, o ressaibo ainda hoje experimentado.

Cite-se ainda que, anteriormente ao claro posicionamento jurídico da OAB quanto a essa matéria, a Advocacia Geral da União (AGU), reconheceu em outro processo a proibição da anistia de torturadores, mas entendeu que a atual Constituição não pode retroagir à ordem anterior para invalidar a Lei da Anistia.

Além dessa divergência, certo é que outra há, a qual é protagonizada por ministros de Estado do Governo Federal: de um lado, o titular do Ministério de Justiça, que é favorável a apuração e punição dos torturadores, e, de outro, o responsável pelo Ministério da Defesa, que entende a reabertura de investigação sobre o período da ditadura “desnecessária” e “ilegal”.

Contudo, antes da final manifestação do STF, deverá ainda a Procuradoria Geral da República firmar a sua posição sobre essa complexa questão, para somente depois, uma vez relatada a ADPF n.º 153 pelo ministro Eros Grau, o Plenário de tal corte emitir a sua decisão sobre a matéria, firmando a interpretação sobre a Lei da Anistia. Seja ela qual for, será seguramente uma decisão histórica e muito importante.

Vitor Rolf Laubé é procurador-geral do município de São Bernardo do Campo e pós-graduado em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.