A investigação criminal no inquérito policial – breves linhas

O primeiro instituto de processo penal, referido no CPP, a partir do art. 4.º, é o inquérito policial. Não apenas pela sua topografia, o inquérito policial é a gênese de qualquer procedimento de investigação e destina-se à apuração de infrações penais e sua autoria.

A polícia judiciária só é exercida por autoridades policiais (art. 4.º, parágrafo único do CPP), o que não exclui a atuação de outras autoridades, que são nominadas como ?administrativas? (v.g., o INSS quando instrui processos administrativos para apuração de irregularidades internas relacionadas às suas atribuições fraudes previdenciárias em agências e postos). A autoridade policial para fins de exercício da polícia judiciária é o delegado de polícia de carreira (art. 144, § 4.º da C.F.-88).

Os manuais de processo penal e os códigos de processo penal interpretados e comentados dispõem sobre os arts. 4.º a 23 do CPP com a extensão suficiente para a compreensão do momento de instauração do inquérito policial, características, como falta de contraditório, natureza inquisitiva, mera peça de informação, e inexistência de nulidades por qualquer ato defeituoso procedido pela autoridade policial. Autores mais modernos tratam o inquérito policial como investigação criminal pré-processual, em cerca de 20 páginas, e partem para o capítulo referente à titularidade da ação penal.

A conclusão desse tratamento doutrinário é que os profissionais de Direito saem da faculdade com parcos conhecimentos sobre o trâmite do inquérito policial e têm a falsa impressão de que esse é uma mera peça informativa. Olvida-se, contudo, que cerca de 90% das ações penais em curso foram precedidas de inquérito policial e que na ação penal são repetidas, praticamente, todas as provas do inquérito policial, à exceção daquelas tidas como irrepetíveis, a exemplo de exames periciais.

As ações penais de maior repercussão no cenário nacional contam com grandes advogados criminalistas que sabem a importância do acompanhamento do seu cliente desde a fase do inquérito policial, pois têm a exata noção de que se uma prova não for ali produzida, evidentemente, não se tratará de sua repetição em juízo. Desde o nascedouro da investigação policial, com a necessária instauração de um inquérito policial (a fim de dar transparência e controle a qualquer procedimento investigatório, coibindo-se investigações sem qualquer registro formal), abrem-se várias oportunidades para o causídico impetrar ?habeas corpus?, como no caso de atipicidade do fato investigado. O suspeito pode invocar seu direito constitucional ao silêncio e de não produzir prova contra si mesmo. Não se vislumbra a possibilidade de uma denúncia, no caso de réu não confesso e que se manteve em silêncio, se não houver uma investigação prévia.

A investigação prévia ou preliminar sempre existirá, seja qual for a denominação que receba. O tema ?inquérito policial? é antigo e nunca deixou de ser sinuoso. Não se discutirão, nesta oportunidade, os pontos polêmicos como medidas cautelares, possibilidade de contraditório mitigado, poder investigatório, proposições de modificação e modernização do inquérito, prisão em flagrante em sonegação fiscal, subordinação da Polícia Federal ao Ministério da Justiça (a PF exerce a atividade de polícia judiciária da União, com exclusividade; se é da União, por que não se subordina diretamente a essa?), dentre muitos outros. Partimos do ponto de vista de que, num roteiro prático, não adianta polemizar, pois a intenção é traçar as primeiras linhas sobre conceitos do cotidiano do profissional voltado para o direito penal. É o caso do uso de expressões como ?indiciamento?, ?meio de investigação?, ?diligência policial?, diferenças entre interrogatório, termo de depoimento e termo de declarações.

2 O delegado de polícia como garantidor da legalidade na investigação

Embora o CPP refira que Ministério Público e juiz podem requisitar a instauração do inquérito policial, qualquer notícia de delito (notitia criminis) pode ser encaminhada ao Delegado de Polícia para apuração. Contudo, não é o simples encaminhamento que irá gerar um inquérito policial e nem se inicia o inquérito policial imediatamente pela requisição (não há vedação a um controle de legalidade da requisição, seja por provocação do Delegado de Polícia, seja por intervenção judicial).

O Delegado de Polícia é o primeiro garantidor da legalidade do procedimento de investigação preliminar. Inicialmente, cabe anotar que há divergência doutrinária quanto ao cabimento da iniciativa judicial de requisição de inquérito policial. Além da doutrina tradicional que se agarra ao texto do art. 5.º, inciso II do CPP, uma nova corrente doutrinária traz dois argumentos em sentido diametralmente oposto quanto à superação da legislação: quebra da imparcialidade do magistrado e quebra do sistema acusatório. Para os críticos do CPP, caberia, com exclusividade, ao Ministério Público, na condição de dominus litis, a iniciativa requisitória. De qualquer sorte, não se vê razão para que a requisição para instauração de inquérito seja desacompanhada dos elementos descritos no art. 5.º, § 1.º do CPP (embora se refiram apenas ao requerimento da pessoa física ofendida: narração do fato, individualização do indiciado, razões de convicção ou presunção da autoria, rol de testemunhas), porque imprescindíveis para o adequado desenvolvimento da atividade policial investigatória e concatenamento lógico das etapas do raciocínio lógico-jurídico da autoridade requisitante.

Nessa qualidade de garantidor, o Delegado de Polícia pode receber uma denúncia anônima e, a fim de evitar constrangimento ilegal, envidar diligências verificatórias sobre um mínimo de lastro da denúncia, certo que é vedado o anonimato e muitas vezes esse tipo de denúncia tem uma finalidade de prejudicar terceiros, adversários políticos ou satisfazer brigas entre familiares. É por tal razão que o art. 5.º, § 3.º, última parte do CPP, condiciona a instauração de inquérito policial à verificação da procedência da informação trazida por alguém do povo. Diga-se que a instauração de inquérito policial é a regra para a apuração da autoria e a materialidade de um delito, há, contudo, circunstâncias que autorizam a mitigação dessa formalidade, como dito alhures. Mas, nem assim, a autoridade policial é dispensada de algum rito. Para a verificação de uma informação sem suporte fático, é comum a expedição de ordem de missão policial escrita, dirigida a agentes ou inspetores de polícia com o objetivo de levantar um endereço, propriedades em cartório, dados com vizinhos, porteiros, vigilantes, que indiquem a ocorrência e autoria do fato e da localização do possível criminoso. Logo que descortinada a penumbra antes existente, é recomendável a instauração do inquérito policial, sigiloso por determinação do código de processo penal: um sigilo para proteger a utilidade da investigação criminal e não para garantir a impunidade do criminoso ou manter a ignorância da sociedade, como se tem visto em vãs tentativas das ?longa manus? da criminalidade organizada e seus vassalos.

O inquérito policial pode ser precedido, então, por diligências sumárias, determinadas de ofício pela autoridade policial. É comum, também, haver manifestação do Ministério Público ou de magistrado para apuração de um crime. Ao receber uma requisição ministerial ou judicial, o Corregedor de Polícia procederá a um exame perfunctório sobre o enquadramento legal e a prescrição do possível crime, isto porque não haveria traço de legalidade em inquérito policial instaurado para apurar fato atípico ou prescrito, ainda que haja requisição da autoridade competente. Haveria a ausência de justa causa, propalada em inúmeros precedentes do Superior Tribunal de Justiça.

Nesse caso, como é vedado o arquivamento pela autoridade policial (art. 17 do CPP) do inquérito policial – e aqui também devem ser compreendidas as requisições judiciais, do Ministério Público e do Ministro da Justiça -, o Delegado Corregedor ou o Delegado que exerça o comando local da instituição deverá devolver a requisição do inquérito, acompanhado das peças que o instruem, mediante ofício, devidamente fundamentado. Apenas se as autoridades requisitantes, após o exame dos argumentos expostos pela autoridade policial, não se convencerem do acerto das razões, motivadamente, é que será instaurado o inquérito policial. Lembre-se que por interpretação teleológica e sistemática do art. 93, inciso IX combinado com o art. 37 da Constituição Federal e com os arts. 2.º e 50 da Lei n.º 9.784/99, a discordância entre ambos os pólos (autoridade policial e autoridade requisitante) deve ser fundamentada e racional, distante de vaidades e caprichos. Tratando-se de autoridade com poder requisitório e, prevalecendo a dúvida, a autoridade policial deve instaurar o inquérito e, ato subseqüente, lançar relatório nesse para apreciação judicial da hipótese.

O inquérito policial advirá também de ofício, ou seja, mediante investigações policiais independentes ou decorrentes de continuação de investigações anteriores a inquéritos policiais já arquivados, mas mediante novas provas, e até pelo desdobramento de fatos com melhor aprofundamento e recurso a novas tecnologias. Nenhum ato normativo infralegal, pode restringir ou condicionar esse poder-dever da autoridade policial, que é uma garantia constitucional da sociedade na repressão da criminalidade comum ou organizada.

Então, ao se deparar com um inquérito policial, o investigado terá certeza de que esse se iniciou por iniciativa policial, por denúncia devidamente apurada (quanto à idoneidade, veracidade e procedência), por requisição judicial, do Ministério Público ou do Ministro da Justiça. Em todos os casos, após um juízo de legalidade do Delegado de Polícia.

Contudo, essa investigação não pode ser anônima. Deve ser precedida por dois atos formais: a confecção de uma portaria do Delegado de Polícia e um ato de tombamento na Delegacia, mediante registro no livro próprio e nos meios informatizados de cadastro, a exemplo da distribuição existente nos cartórios de distribuição dos foros.

No âmbito da Polícia Federal, a portaria instauradora deverá conter o número do protocolo e do documento-base da notícia do crime, o relato sucinto do fato delituoso, a tipificação ainda que provisória e, quando possível, a autoria, bem como as diligências de cumprimento imediato (art. 17 da Instrução Normativa n.º 11-DG/DPF de 27-06-01).

O auto de prisão em flagrante deverá observar os arts. 301 e seguintes do CPP, atentando-se para a nova metodologia trazida pela Lei n.º 11.113 de 13-05-2005, que alterou a redação do art. 304 do CPP. Essa alteração permitiu que o condutor do flagrante, encerrado seu depoimento, entregue o preso e os bens arrecadados e possa retornar para suas atribuições normais, como uma patrulha (policial militar), fiscalização rodoviária (policial rodoviário), custódia de preso (agente penitenciário). Antes da edição da Lei n.º 11.113/05, o condutor e as testemunhas só podiam deixar a Delegacia de Polícia quando fossem encerrados todos os atos processuais formais do inquérito policial, com lavratura de autos de prisão, de arrecadação, de apreensão, ciência das garantias constitucionais do preso, nota de culpa, laudo preliminar em caso de entorpecentes, etc. Agora, há uma economia de tempo muito grande para o condutor do flagrante (em média 3 horas, por isso o novo modelo também é chamado ?flagrante eficiente?) e para cada uma das testemunhas, além de um incentivo para as funções essenciais de colaboração com a Justiça.

No caso da prisão em flagrante, o auto de prisão em flagrante delito (APFD) faz as vezes da portaria de instauração do inquérito policial (v. art. 535 do CPP). Não há prévia distribuição da notitia criminis porque os fatos são urgentes e geralmente trazidos por agentes policiais da Delegacia, outras autoridades públicas, como as retrocitadas, além de fiscais da vigilância sanitária, do IBAMA, etc. O responsável pela presidência do inquérito policial será o delegado plantonista, de sobreaviso ou o delegado da Delegacia especializada, caso se faça em horário normal de expediente, a depender do regimento interno, portarias ou instruções normativas que cada órgão policial edite, por se tratar de tema interna corporis. De qualquer sorte, haverá um tombamento do auto de prisão em flagrante delito, recebendo uma numeração e registrando-se nos livros e sistemas informatizados, com dados do criminoso, vítima, tipificação, autoridade responsável e escrivão do feito.

O marco do inquérito policial é a edição da portaria instauradora, com relato sucinto dos fatos, tipificação provisória do delito, ou a lavratura do auto de prisão em flagrante delito. Em ambas as situações, haverá registros formais como tombamento e inscrição de dados básicos mínimos em meio físico e virtual (sistemas informatizados) e um primeiro juízo de legalidade pelo Delegado de Polícia, que pode e deve se manifestar sobre a ocorrência, em tese, de um fato típico penal, seja nas requisições que lhe são dirigidas, seja perante as autoridades públicas que tragam um preso à sua presença para formalização dos atos de polícia judiciária.

Por essas breves linhas, denota-se como é importante para a transparência e legalidade da investigação criminal a atuação de um delegado de polícia de carreira, com formação jurídica, garantidor dos princípios constitucionais e democráticos, atento para distorções doutrinárias que tentam ofuscar a imprescindibilidade da investigação prévia, seja sob as vestes do inquérito policial ou outro nome que rotule o seu rito.

Rodrigo Carneiro Gomes é delegado de Polícia Federal em Brasília, pós-graduado em Processo Civil e pós-graduando em Segurança Pública e Defesa Social. Professor da Academia Nacional de Polícia. Atua na Diretoria de Repressão ao Crime Organizado e foi chefe do serviço de apoio disciplinar da Corregedoria-Geral.

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