A humildade dos melhores

Honraram-me os meus queridos alunos, cientes das minhas posições sobre o ato de Colação de Grau nos nossos dias, com o convite para que fosse o Paraninfo da turma. Encheu-se, de imediato, de alegria, o meu coração, mormente porque sabem eles, entre outras coisas, que formatura é algo construído a cada dia, na sala de aula, onde o prazer do saber é inexplicável, onde a mágica do ensinar e aprender constrói relações que ajudam a fundar e amoldar cada um de nós, para nunca mais se esquecer. Hoje, porém, nesta cerimônia em festa, é impossível viver aqueles momentos e, portanto, volto a lhes repetir: a formatura estava lá e para lá devemos voltar a memória, sempre e sempre, fazendo vivo o prazer do esforço, le gout de l’effort. Nisto reside um belo sentido para se viver, ou seja, no aprender que o prazer não só é sempre parcial mas, sobretudo, que ele está no tramitar, muito mais que no resultado.

Honraram, também, o Prof. Edson Isfer, dando-lhe o Nome da Turma; e como Patrono brindaram o Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca. Homenagearam, ademais, os professores doutores Celso Ludwig, Luiz Marlo de Barros Silva e Sérgio Cruz Arenhart. Todos eles, sem nenhum favor, mereceram a honraria porque representam algo mais que o mero ato de ensinar. Da minha parte, singelo e idealista estudante que continuo sendo, sinto muito orgulho em compartilhar da amizade de todos e com eles dividir o sonho de ter uma Faculdade de excelência, pública e gratuita.

Por falar em excelência, é preciso não deixar passar o feito da minha querida turma, ressaltado pelo jornal Gazeta do Povo de 12.01.04 com o título: “Provão põe Direito da UFPR como o melhor do Brasil”. Referia-se a um dado que não inventamos: era o resultado do Exame Nacional de Cursos e nele estava expresso um índice de 85,9% de alunos que acertaram mais de 75% das questões da prova, ou seja, superior a todas as demais Faculdades do país. Eis, portanto, a força jurídica dos nossos alunos, aos quais não cabe o labéu, muito comum nos discursos gratuitos de desavisados que adoram as generalizações, de estar o ensino jurídico marcado pela falta de qualidade. Em tempos de absurda regência de um pensamento mercadológico, resistimos heroicamente com amor e empenho à causa pública para continuar mostrando a todos que o dinheiro do povo, na Academia da Praça Santos Andrade, apesar de pouco, muito pouco, é usado da melhor forma possível, justo para impedir que se ouse cogitar não estarmos no caminho certo.

Há, nessa vitória, como parece elementar, algo mais para meditar, não propriamente pelos 85,9%, de acertos, mas pelos 14,1% de erros. Aqui, precisamos deixar os demais e as comparações para colocar luz naquilo que falta; e que faz a nossa diferença. Percebam: não somos os 85,9% de acertos, mas os 85,9% de acertos mais os 14,1% de erros; e aí a soberba desaba para encontrar na humildade a verdadeira virtude dos ganhadores. Saber que se não sabe, com Sócrates; saber, com Carnelutti, que quanto mais se sabe mais aumenta os pontos de contato com o que se não sabe e, portanto, que mais saber é menos saber; saber, com Heidegger, que a verdade está no todo e ele, o todo, é demais para nós, justo porque existir é interpretar-se; enfim, saber, com Lacan, que não damos conta porque em sendo sujeitos (inconscientes) constituídos como linguagem, sequer sabemos das palavras que aí estão e, escapando desse lugar, vivemos enganados por imagens e palavras, nesse sítio chamado Razão, onde o que se tem, sempre, são meras aparências. Donde retirar, assim, o orgulho vão, a arrogância, o sentimento pernóstico de superioridade? Aprendam: só seremos mesmo grandes – e de fato queremos ser assim – quando formos cientes das nossas imensas deficiências, as quais nos dão uma identidade e a certeza de que precisa existir amanhã para ser feito o que se não pode fazer hoje.

Por isto, quando Jean-Paul Sartre disse que “o inferno são os outros”, permitiu-nos concluir que em nós, esse Eu de aparências em que vivemos, em sendo um outro, um estrangeiro em nós mesmos, como mostrou Lacan, é o nosso inferno. Percebam: nosso sofrimento está diretamente ligado às imagens que, povoando a nossa cabeça, maltratam-nos sem trégua, não raro por besteiras, num quadro de neurose das pequenas diferenças, com demonstrou Freud.

O importante, contudo, é ter ciência de que somos assim, clivados, fragmentados; e pagamos com nossa humanidade por isso. O problema, pelo Direito, já lhes disse outras vezes, é quando esse preço é pago, por nossa conta, por nossos atos – sejam eles sentenças, pareceres, aulas, o que for -, também pelos outros. É aí, justamente, que um jurista coloca o seu valor, fazendo ver que sua cultura jurídica é suficiente para, no extremo, produzir sublimação. Antes da dor de cada um se resolver nos outros pobres coitados, é preciso desconfiar das imagens, sempre incompletas e, portanto, falsas, que nos dão tanta certeza; e daí os prejulgamentos, os preconceitos, os justiceiros, essa fauna de beócios que, em nome das suas verdades e certezas, atravancam o amor, a democracia, a fraternidade, a solidariedade, a tolerância. Nossa esperança – para não dizer a nossa certeza – é que vocês, por nossa culpa (ou seria o nosso amor?), nunca serão assim. Tentamos, com todas as nossas forças, construir cidadãos e esperamos ter conseguido. Mas atenção: cidadãos sabem que democracia, em todas as relações, é respeito incondicional pela diferença, pelo outro enquanto tal.

Há, desde esse almejado lugar, que ser bom. Tal conceito, como vocês sabem, é por demais complexo, mas vale apresenta-lo. Em grande parte sobre ele aprendi com um pai – e uma mãe – que aqui estão e que gostaria de homenagear, para homenagear a todos os pais e ressaltar o valor que têm e o respeito que merecem. Refiro-me aos queridos amigos Lauro Augusto Fabrício de Melo e Vania Elizabeth Cherem Fabrício de Melo. Ele, um Juiz de Direito íntegro, que sabe o que é bondade. Ela, doce e culta, é o equilíbrio que permite, quiçá, a sabedoria e a bondade se refletirem em decisões de qualidade. Essa bondade, porém, não sai do nada. Arrisco, com ousadia, uma fonte: a querida Dona Maria, mãe do Lauro Augusto, que tive o prazer de conhecer e ser, em um período de tempo, seu advogado. Inteligentíssima, como são os Ribas, de Guarapuava, era a bondade em pessoa, com aquele ar angelical de avó de todo mundo, sempre a temperar o excesso de limites do velho Desembargador Fabrício de Melo. Meu amigo Lauro Augusto, pai do nosso colega Fernando Augusto, constituiu-se pelos limites, imagino, impostos pelo Desembargador, mas faz justiça com a bondade – e por que não? – e a inteligência da adorável Dona Maria. Dois meses após formado tive a sorte de passar no concurso para o Ministério Público e, pelo destino, fui nomeado para a Seção Judiciária de Foz do Iguaçu. Com 23 anos, sabia, quem sabe, o que vocês sabem e sigo sabendo: pouco! Era preciso, porém, enfrentar o trabalho, tomar decisões, opinar em casos que decidiam a vida das pessoas. Não raro, devo confessar, tive medo. Medo de mim mesmo; das minhas imagens; das minhas certezas; das minhas verdades. E com a humildade que consegui arrecadar desde casa, dia após dia, fui perguntar e aprender coisas com os amigos juízes, promotores de justiça, advogados, enfim, a quem fosse necessário e possível; e sempre encontrei uma palavra amiga, de todos, que gostaria de lembrar mas o tempo breve desta Oração não permite. Do Lauro Augusto, porém, já magistrado em Foz do Iguaçu, com a paciência e humildade que lhe é peculiar, tive lições inesquecíveis sobre a bondade, mais tarde elaboradas e traduzidas na assertiva: “se você pode fazer o bem a alguém, não faça nunca o mal”. Escutem isso mais uma vez, para dizerem a vocês mesmos sempre que for necessário. Mas não se esqueçam: faz o bem aos outros quem está bem consigo mesmo, inclusive para ter a sabedoria de que, em boa dose, faz-se o bem se dizendo “não”. Um dos maiores dramas do Direito reside exatamente aí, isto é, ser instrumento à descarga daqueles que não estão bem consigo. Sobre isso não sabemos muito, mas conhecemos os resultados, os quais respondem pelo nome de injustiça. Em uma sociedade aonde a ética vai sendo consumida ao preço da libertinagem, precisamos torcer para não sermos as vítimas. O pior, contudo, é imaginar que podemos ser os algozes. Cuidado, meus queridos afilhados, a vida é impiedosa com gente desse porte.

Devo concluir, mas não poderia, pelo meu coração cheio de dor e de saudade, sem lhes transmitir um pouquinho que ganhei da nossa musa, sempre tão bela, em todos os sentidos, que Deus resolveu nos levar sem pedir licença, na juventude de seus incompletos 92 anos. Refiro-me à diva Helena Kolody, que sabia da impossibilidade de quem ensina, como mostrou num poema invulgar pela beleza e consistência chamado Evolução:

“Caem as folhas de repente,

brotam outras pelos ramos,

murcham flores, surgem pomos

e a planta volta à semente.

Assim somos. Sutilmente,

diferimos do que fomos.

Impossível transmitir,

por secreto e singular,

o acrescentar e perder

desse crescer que é mudar.”

Vou terminar, para que a festa continue. Obrigado, mais uma vez, por me restituírem a esperança na força da realização dos meus desejos. Já lhes disse: afora Aldacy e as nossas crianças, nada era mais importante que vocês. Honrem, por aí, a minha opção. Tenham orgulho dessa nossa Faculdade de Direito porque, no fundo, o tempo que ali passamos juntos sempre será o melhor da vida de cada um. Que Deus os ilumine e proteja.

A humildade dos melhores – Oração de Paraninfo proferida na sessão de Colação de Grau dos Formandos da Faculdade de Direito da UFPR, no Teatro Guaíra, em Curitiba, aos 25/02/04.

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

é professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR), mestre (UFPR), doutor (Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Coordenador eleito do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR.

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