A democracia representativa e a (in)fidelidade partidária

A fidelidade partidária pode ser definida como o compromisso do representante político não deixar o partido pelo qual foi eleito e de seguir às diretrizes democraticamente estabelecidas pelas instâncias partidárias sob pena de perder o mandato.

O instituto da fidelidade partidária foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro através da emenda constitucional de 1969, por imposição da Junta Militar que buscava manter a unidade em torno de sua bancada no Congresso Nacional, representada pela ARENA. A discussão sobre a fidelidade partidária teve sua origem depois de setembro de 1968, com o pronunciamento do Deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, que conclamava o povo brasileiro a realizar um boicote ao militarismo, não participando das comemorações do dia 07 de setembro que se aproximava. Os militares consideraram tal pronunciamento provocativo ?aos brios e à dignidade das forças armadas?, por isso deveria ser prontamente rechaçado com a cassação do mandato do deputado. Tal proposta, no entanto, não encontrou apoio em um grupo de deputados da base governista que se manifestou contrário à violação das imunidades parlamentares. Como resultado, mesmo com uma bancada majoritária na Câmara Federal, os militares sofreram uma importante derrota política com a não aprovação da proposta de cassação do mandato do deputado de oposição. A dura resposta veio em seguida, antes com o AI-5 e mais tarde com a emenda Constitucional de 1969, junto com o novo texto constitucional a previsão do instituto da fidelidade partidária que estabelecia a perda do mandato caso o representante político viesse a se opor por atitudes ou pelo voto às diretrizes do partido pelo qual havia sido eleito.

Com o processo de democratização do país, cumpriu à Emenda Constitucional n.º 25 de 1985 extinguir do ordenamento jurídico brasileiro o instituto da fidelidade partidária. Partindo da idéia do fortalecimento interno dos partidos políticos, coube à Constituição de 1988 ressuscitar o instituto da fidelidade partidária. A Constituição não remeteu a regulamentação da fidelidade à lei ordinária, mas ao estatuto de cada partido. Caberia, assim, a cada partido político estabelecer como deveria funcionar internamente o mecanismo de controle sobre as decisões de seus representantes eleitos.

O maior problema, no entanto, está na própria Constituição que não prevê em seu texto a perda de mandato do representante político por ato de infidelidade partidária. O art. 55 da Constituição de 1988 enumera uma série de possibilidades que poderiam levar o representante no legislativo a perder o mandato; porém, em nenhuma hipótese arrolada está prevista a perda por ato de infidelidade ao partido. Como conseqüência, o mandato acaba se transformando em propriedade privativa do representante político e o instituto da fidelidade partidária perde completamente a sua eficácia, já que o representante só poderá ser punido com, no máximo, a expulsão da agremiação, sem acarretar qualquer prejuízo em relação ao controle sobre o mandato. Portanto, a falta da previsão legal permite que os representantes eleitos pelos partidos mudem de legenda sem sofrer qualquer tipo de sanção jurídica que esteja diretamente relacionado com a perda do mandato.

A questão mais grave, no entanto, fica por conta do voto de legenda e do próprio sistema proporcional, os quais possibilitam que grande parte das vagas para o Legislativo seja preenchida com candidatos que obtiveram votos nominais muito inferiores que os seus concorrentes, fato que não os impedirá de terem o direito de se apropriarem e de exercerem um mandato sem qualquer tipo de controle partidário. O caso de Enéas é exemplar, com a soma de seus votos ele acabou elegendo outros deputados, muito dos quais com votação insignificante, sendo que logo em seguida a maioria deles acabou deixando o partido e levando consigo o mandato.

Conforme a determinação legal do art. 25 da Lei dos partidos políticos de n.º 9.096 de 1995, o estatuto do partido só poderá estabelecer para o parlamentar que não cumprir as diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos partidários, além das medidas disciplinares básicas de caráter partidário, normas de desligamento temporário da bancada, suspensão do direito de voto nas reuniões internas ou perda de outras prerrogativas de que em decorrência da representação e da proporcionalidade partidária.

Embora a Constituição de 1988 tenha remetido não à lei, mas aos estatutos de cada organização a faculdade de estabelecer as sanções para os atos que configurem a infidelidade partidária, a ação mais drástica que o partido pode praticar é a de excluir o infiel de sua legenda. Porém, quando se tratar de membro do Legislativo, tal exclusão terá como único reflexo a perda de eventuais cargos ocupados em mesas diretoras da respectiva Casa, já que o preenchimento do mesmo se trata de indicação partidária.

Como exemplo, vale citar o caso da Constituição da República Portuguesa nela os partidos políticos ocupam papel de grande destaque. A Carta de Portugal não menciona especificamente o instituto da fidelidade partidária, muito embora tal previsão seja feita nos próprios estatutos partidários, como mecanismo disciplinar que prevê em determinadas situações até a expulsão do filiado. Por outro lado, com fundamento no art. 163, n.º 1, alínea c da Constituição, que garante a ?transparência da relação dos eleitos para com o eleitorado?, os partidos políticos portugueses passaram a reclamar o controle sobre o mandato quando houver a troca de partido por parte do representante político.

A questão sobre a imperatividade partidária do mandato, ou seja, do controle do partido político sobre o mandato, se tornou uma das principais condições para a sobrevivência da democracia representativa liberal. A democracia liberal sempre trabalhou com a idéia virtual de representação política, na qual os eleitos passariam a representar o todo, sem o compromisso de prestar permanentemente contas sobre suas decisões a quem os elegeu. Com o controle do mandato pelo partido político o representante deixaria de representar indistintamente o conjunto dos eleitores, para só representar a vontade estabelecida pelo seu partido. Seguindo o espírito da fidelidade partidária, o representante prestaria contas de suas ações, única e exclusivamente, ao partido, sob pena de ser substituído no exercício da representação política.

Dentro dessa perspectiva, o partido político assumiria uma nova função no processo de representação política. A ele caberia a função de aglutinar os interesses individuais de seus militantes e simpatizantes buscando construir uma vontade partidária. Com isso, não haveria mais espaço para que vontades individuais ou facciosas prevalecessem na esfera das políticas públicas. Enquanto sujeito coletivo caberia aos partidos a tarefa de garantir os espaços públicos comprometidos com a canalização, aglutinação e harmonização democrática das vontades individuais, transformando-as em princípios e programas que devem ser compostos com as vontades dos demais partidos, na esfera do Legislativo, para possam ser estabelecidas as políticas públicas a serem implementadas pelo Estado.

O maior desafio da Sociedade brasileira contemporânea reside em um grande paradoxo, como trabalhar com a idéia de controle sobre o mandato do representante político dentro de uma estrutura partidária comandada por alguns caciques que não manifesta nenhum interesse em respeitar e garantir os princípios básicos da democracia intrapartidária. Diante desse contexto, o controle sobre o mandato se apresenta muito mais como um mecanismo para atender os interesses de alguns poucos, do que efetivamente da vontade do conjunto dos membros e simpatizantes de cada partido político.

Diante disso, o mais grave problema que envolve as discussões sobre a Reforma político-partidária encontra-se na forma reservada com que o Congresso Nacional vem tratando a matéria. Tais reformas são importantes demais para que o Legislativo, com a concordância do Executivo as encaminhem como se o objetivo do debate fosse pertinente as suas próprias questões interna corporis.

As perguntas que persistem são: Partido político para quem? Contra quem? Para quê? Nesse sentido específico, a análise crítica do modelo de representação política liberal é o pressuposto da transição de um modelo de representação política formal para a representação política material.

Em síntese, a questão fundamental está na discussão do papel institucional dos partidos políticos nessa democracia que se pretende construir.

Orides Mezzaroba é professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFSC e Pesquisador do CNPq.

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