A citação editalícia do réu pobre e sua inequívoca ciência da acusação por outro meio

Embora editada no ano de 1996, a Lei n.º 9.271 que também alterou o art. 366 do CPP, continua suscitando ainda inúmeras controvérsias na sua aplicação, sem prejuízo daquelas imediatamente surgidas por ocasião de sua edição, como a suspensão automática do prazo prescricional, cuja inconstitucionalidade não se põe mais em xeque, conseqüência da suspensão do processo por conta da citação editalícia do acusado, o qual deixa de comparecer e tampouco constitui defensor, sem falar na banalização da produção antecipada de provas, nomeadamente a testemunhal, ao arrepio da taxatividade disposta no art. 225 do CPP e em prejuízo do acusado, conforme já decidiu o Colendo STF, frustrando em parte o princípio colimado pela Lei n.º 9.271/96 de que ninguém pode ser julgado sem ser ouvido, inclusive acompanhando o acusado as provas produzidas contra si, concretizando em ambas as situações sua autodefesa, corolário do direito de audiência e o de presença.

Em razão da limitação espacial deste trabalho, focalizarei uma questão que se me apresentou durante o patrocínio de uma causa que se encontra em tramitação perante o 2.º Tribunal do Júri da Capital de São Paulo, onde fui nomeado para patrocinar a defesa de um hipossuficiente que fora citado por edital, deixando de comparecer ao ato de seu interrogatório e tampouco constituindo um defensor, motivo por que minha incumbência cingia-se em atuar na denominada produção antecipada de prova testemunhal requerida pelo Ministério Público.

Entrementes, antes mesmo dessa produção antecipada de prova, o pobre acusado pobre, o qual também tinha contra si uma prisão preventiva decretada nesse mesmo processo e por conta única de sua revelia, procurou-me em meu escritório para saber detalhes da acusação que lhe pesava em juízo, ocasião em que lhe dei pormenorizadamente ciência de tudo. Lancei também nos autos criminais petição requerendo a revogação de sua prisão preventiva, uma vez que não mais presentes os requisitos insculpidos no art. 312 do CPP, e que hoje autorizam no Brasil a decretação ou manutenção de toda prisão cautelar, sendo ainda certo que o acusado desejava se apresentar em juízo e acompanhar o desfecho de sua sorte processual. No entanto, esse pedido foi indeferido, calcado naqueles vetustos bordões já bem conhecidos daqueles que militam na esfera criminal.

Bati novamente os olhos no art. 366 do CPP, recordando-me mais uma vez que não era defensor constituído nesses autos, mas indicado pelo Estado, razão pela qual, após o término daquela antecipação de prova testemunhal, o processo ficaria suspenso, sabe-se lá por quanto tempo, sabido que aquele hipossuficiente não poderia se apresentar em juízo, sob pena de ser impiedosamente atirado aos 95% da população carcerária pobre do nosso País!

Com efeito, como já visto, o réu que for citado por edital, deixando de comparecer e também não constituindo defensor, terá seu processo suspenso, sendo automática a suspensão do prazo prescricional, sem contar a possibilidade de se lhe decretar a nefasta prisão preventiva. Se esse mesmo acusado tomar ciência da existência dessa ação penal movida contra si, poderá espontaneamente comparecer em juízo e responder aos termos do processo, inclusive podendo constituir um defensor de sua escolha, caso reúna condições econômicas para isso. Se ele tiver contra si uma prisão preventiva, poderá ainda assim constituir um defensor, o qual comparecerá em juízo, munido de procuração, ocasião em que o processo e o prazo prescricional retomarão seus fluxos. Indaga-se: e se o acusado, além de ter contra si uma prisão preventiva, também der o azar de ser pobre? Pela dicção do art. 366, caput, do CPP, recomendar-se-ia ao acusado que ele também acendesse uma vela para o requisitado Santo Ivo, o qual tranqüilamente lhe abriria uma exceção! Deveras, de uma simples leitura perfunctória do referido dispositivo processual, depreende-se sem muita dificuldade que o legislador novamente, sem querer querendo, por cochilo deliberado, privilegiou o acusado abastado ou remediado, uma vez que o acusado pobre volta a amargar dupla discriminação – a de acusado e a de pobre! -, certo que se for citado por edital, tendo contra si uma prisão preventiva e não podendo constituir um defensor, seu processo ficaria suspenso até que um dia fosse preso, certo que a suspensão do prazo prescricional seria uma conseqüência automática daquela suspensão, diferente, portanto, do acusado que, embora também tivesse contra si uma prisão preventiva, pudesse constituir um defensor! Isso é semelhante, no aspecto discriminatório, àquilo que até a pouco tempo acontecia antes da edição da Lei n.º 10.792/2003, quando o réu pobre podia ser interrogado sem defensor!

Entretanto, qual foi a mola propulsora, o motivo inspirador da suspensão do processo preconizada no art. 366, caput, do CPP? É apodíctico aí que a mens legis visou contemplar e proteger o princípio traduzido no brocardo nemo inauditus damnari potest (ninguém pode ser julgado sem ser ouvido), sem prejuízo da prévia e inequívoca ciência do teor da acusação e do tempo razoável para a preparação da defesa. Ora, se assim é, temos que o fim colimado pelo art. 366 do CPP, no caso de o acusado ter sido citado por edital e deixar de comparecer e tampouco constituir defensor, poderá ser alcançado de outro modo, mormente se for hipossuficiente com prisão preventiva decretada, uma vez que não disporá de recursos econômicos para constituir um defensor, quando então a inequívoca ciência do inteiro teor da respectiva ação penal poderá ser feita por meio de toda prova admitida em direito, como, e.g., uma declaração firmada pelo acusado de que tem pleno conhecimento da acusação que lhe foi deduzida em juízo, sem a necessidade, repise-se, de o réu constituir um defensor apenas para essa finalidade, a qual seria alcançada com a juntada daquela declaração, incumbindo ao juiz na seqüência retomar o curso do processo suspenso, assim como o regular fluxo do prazo prescricional.

Nesse diapasão, orientei assim aquele réu pobre a firmar declaração elaborada em meu escritório de que tomara ciência plena do teor da acusação constante da ação penal que lhe foi movida perante o 2.º Tribunal do Júri da Capital de São Paulo, juntando ao depois referido documento por petição, requerendo também a retomada do curso do processo, com a conseqüente fluidez do prazo prescricional, tendo a jovem e culta magistrada do feito acolhido os pedidos, mantendo a minha nomeação agora também para patrocinar até o final a defesa desse eufemisticamente denominado hipossuficiente.    

Romualdo Sanches Calvo Filho é advogado, professor e tribuno do Júri em São Paulo-SP. 

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