A chatice das aulas de literatura

A literatura sobrevive nas grades curriculares por seu potencial de desenvolver a reflexão sobre o sujeito, sobre a vida e ser um campo de exercício da cidadania. É possível uma participação social relevante sem a literatura (há políticos que nunca leram um livro!), mas em meio a tanta desigualdade de oportunidades a literatura é um caminho de acesso a certos bens culturais, sociais e (por que não?) econômicos. Existe um sistema estatal que visa a promoção da leitura, livros estão à disposição nas bibliotecas públicas e a sociedade tende a diferenciar e valorizar quem lê. Socialmente reconhecida, potencialmente libertadora… Então por que é tão difícil formar leitores na escola?

Para responder a questão podemos recorrer à trágica história da leitura, às inúmeras perseguições que ocorreram em seu nome. Tenhamos claro que sempre existiram e existirão livros proibidos. O fato de não haver mais censura institucionalizada não significa que ela não seja exercida de outras formas. A escola, por exemplo, desqualifica os romances policiais de Agatha Christie, os de aventura de Ian Fleming (e seu indestrutível James Bond) ou os best-sellers de Paulo Coelho. Esses autores, entre tantos outros, são responsáveis por livros que obedecem à lógica do mercado, por isso denominados romances de massa. Esse tipo de literatura apresenta enredos dramáticos, clichês, personagens sem profundidade, vocabulário e sintaxe básicos, seduzindo milhões de leitores ávidos de prazer fácil. Como não é a grande arte cheia de potencialidades sonhada pelos educadores, a escola simplesmente interdita essas obras e propõe em seu lugar uma literatura antiga, muitas vezes distante do universo do jovem leitor. Ainda há professores acreditando que formam leitores competentes e apaixonados com romances de José de Alencar, histórias românticas de Macedo ou papagaiando um superficial enigma de Machado de Assis. Assim, mesmo a literatura brasileira contemporânea permanece distante, restrita quase sempre à literatura infanto-juvenil, presente na escola fundamental e largamente popularizada pelas editoras. O uso de boa literatura estrangeira é praticamente impensável, percebendo-se quase sempre um alívio quando ela se mantém fora dos portões dos colégios.

Além da distância existente em relação à literatura contemporânea, de modo geral, os professores de literatura tendem a pura e simplesmente ignorar a experiência dos alunos em relação às leituras que não estão previstas nos programas escolares. Censuram-se biografias, livros-reportagem, livros de história, obras estrangeiras e, como não está no programa, muitos professores não sabem o que fazer quando se vêem às voltas com livros de grande sucesso, como os da série Harry Potter. Ao invés de alegria porque a molecada lê volumes de duzentas ou trezentas páginas, o que se vê são professores desconfiados, bicudos, temerosos de que a literatura brasileira desande por causa do bruxinho.

Os alunos acabam tendo, então, duas diferentes experiências de leitura: uma oficial, escolar, chata e distante da experiência contemporânea e outra mais pessoal e dinâmica, compartilhada inclusive com os meios de comunicação de massa. Nessa situação, a escola fica em total desvantagem, o que reforça a máxima de que ?toda censura é burra?.

A lentidão para assimilar novidades literárias faz com que muito pouco do que é produzido no universo cultural escrito entre na sala. Isso não é um problema apenas brasileiro, nem recente. Aristóteles considerava digna do cidadão grego apenas as epopéias e poesias de temática heróica ou as tragédias dos grandes autores do passado. Estabelecia-se o cânone, conjunto de obras de referência, que explica por que certo tipo de literatura não freqüenta hoje a sala de aula. Desde a Antigüidade, dignas da escola são apenas as obras que passaram pela seleção de um grupo de notáveis. Hoje, entre o momento em que se determina se um livro será publicado até sua escolha pelo professor na escola, passam-se inúmeras fases. Numa das pontas desse iceberg está o conselho editorial, professores e profissionais (muitas vezes escritores) com a difícil e importante missão de escolher o que deve ser publicado, e na outra, os consumidores e os promotores indiretos das vendas, os professores.

Deve-se ter claro, de uma vez por todas, que o professor de literatura não ocupa um lugar neutro no mundo. Muitas vezes ele é um censor, um agente da promoção cultural e econômica de certos grupos. Sua missão, porém, é outra: democratizar conhecimento, promover cidadania e valores éticos. Essas coisas, porém, são feitas com o auxílio de livros. Não há escapatória. Mas sempre que o professor ouvir que se deve erradicar o analfabetismo ou promover a formação de leitores, ele terá de lembrar que por trás do lugar-comum agem forças econômicas. Entra em jogo, assim, o papel ético e moral que o professor de literatura deve desempenhar.

A sala de aula deveria ser um espaço de compartilhamento de experiências. A aula de literatura seria assim um momento privilegiado para que a experiência do professor com textos, literários ou não, fosse compartilhada com os alunos, que por sua vez partilhariam suas experiências individuais como leitores, numa troca que daria sentido à aula e à literatura. O professor, leitor experiente, assumiria um espaço de diálogo pertencente igualmente ao escritor, cujo texto é resultado também de experiência de vida e de leitura. O diálogo entre o professor e a obra seria enriquecido pela experiência do escritor com textos teóricos e críticos e se somaria às experiências individuais de leitura dos alunos, que por sua vez se estenderia aos outros colegas, que então buscariam o escritor e assim por diante. A partir da dinâmica da vida e suas inúmeras leituras possíveis, a aula de literatura pode se tornar, de fato, um exercício de cidadania. Na pauta da educação fica, por enquanto, a questão de como fazer isso.

Voltar ao topo