A campanha-espetáculo

Gaudêncio Torquato

O exercício da democracia política atinge o clímax nas campanhas eleitorais. Esta é a hipótese que a ciência política normalmente consagra, quando se faz do jogo eleitoral a possibilidade em que os cidadãos escolhem livremente seus representantes, tendo acesso à sua livre expressão, e onde estes, sem exceção, devem assumir o compromisso público de defesa dos interesses de grupamentos sociais, conferindo nitidez ao pensamento e buscando traduzir um ideário em defesa do bem comum. Infelizmente, esse pressuposto fundamental da democracia política está se tornando, entre nós, monumental abstração. Nunca se viu no País um discurso tão mimetizado, tão locupletado de falsos slogans e meias-verdades. A mentira ou o uso seqüenciado e sistemático de versões, além de contribuir para disseminar a confusão entre os eleitores, também ajudam a deformar a própria cultura política. Pior é constatar que é ele mesmo, o povo, que paga (com impostos) para ouvir lorotas, promessas mirabolantes, idéias extravagantes e compromissos que jamais serão cumpridos, além de ladainhas de homenagem e exaltação a figuras que, na condição de proxenetas da política, vendem suas abjetas figuras, alugando a língua para sujar a imagem de outros figurantes da jornada eleitoral.

Os denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação e mobilização social passam a ser cada vez mais singulares e unívocos, expressando a força de um poder centrífugo, que nasce e se fortalece nas cabeceiras de um Estado onipotente e onisciente, patrocinador de nomes e perfis. Esta é uma das fotografias mais claras da atual campanha eleitoral que se encerra na imensa maioria dos municípios e cujo segundo turno exibirá de forma até mais aguda as mazelas da política de clientela. Os candidatos integrados ao sistema de forças governistas, em todas as esferas da federação (municípios, estados e União) levam a melhor, pelo menos na perspectiva do marketing, porque contam de maneira direta ou indireta com a alavanca das máquinas administrativas e ainda com recursos abundantes arrumados por quem controla as chaves de cofres públicos.

Este é um dos paradoxos do sistema democrático. O modelo de sociedade centrípeta, plural, ideal que inspirou o nascimento da democracia, afasta-se de seu rumo para desenvolver e expandir pólos centrífugos de mando e influência. Nesses espaços, os donos do poder se unem a grupos empresariais, principalmente na esfera dos serviços do Estado, e a uma máfia de oportunistas e intermediários, para ajustar os fatores da política ao seu figurino, negociando futuras recompensas, ditando discursos, comprando partidos, cooptando atores e, sobretudo, nas etapas mais agudas do processo eleitoral, fazendo prevalecer versões sobre fatos. O lema do ciclo eleitoral que se encerra é: tudo pode ser dito, principalmente se for falso. Trata-se de um axioma que, convenhamos, carrega tanta ética quanto seu correspondente contraponto que inspira as ditaduras: nada pode ser dito, principalmente se for verdadeiro. A reta final desta campanha eleitoral caracterizou-se pelo show de desmoralização da palavra, sob uma estética poluída de avenidas e ruas, em cujas paredes e postes se plantou uma fraseologia de slogans endeusando perfis.

É bem verdade que, nos últimos anos, as campanhas brasileiras têm se esmerado nos aspectos da espetacularização da política, fenômeno que tomou impulso e se desenvolveu, de forma mais sistemática, a partir do tormentoso ciclo Collor. O compromisso político, de tão banalizado, perdeu crença e valor. Não vale a metade do que garantem as palavras. Sob os horizontes avermelhados que o PT desenhou nos portais da República, depois de tanto desfraldar estrelas e bandeiras cor de sangue, o País mergulhou mais fundo no oceano de palavras ao léu, cujos traços aparecem nítidos na mais exuberante e gorda campanha petista de todos os tempos. Impressiona o rolo compressor do PT em todas as regiões. Todos os espaços – dos nobres aos mais simples – estão tomados pelo vermelho do partido.

Com uma linguagem vertical e capilarizada, um slogan básico enfeitando a logotipia dos candidatos, e buscando, sobretudo, atrair as camadas mais carentes e os contingentes periféricos mais afastados, o endinheirado PT desfila olimpicamente sua força pela passarela das campanhas, arregimentando e pagando batalhões de rua para promover a maior mobilização eleitoral que já se viu na história das campanhas. Ou vai ou racha, essa parece ser a palavra de ordem de um partido que, por anos a fio, exibia a garra de militantes que se escudavam no manto da fé e da esperança. Hoje, os militantes aguerridos de outrora são substituídos por mão-de-obra paga (e bem paga). A cosmética petista, estampada nas bandeiras vermelhas, conta com a força de grandes estruturas empresariais, muitas das quais já servem às máquinas administrativas, enquanto outras se aproximam dos eixos de mando na esteira da perspectiva do poder. Ao final do primeiro turno, a campanha nas grandes cidades chega ao fim passando ao cidadão a idéia de que: 1) o País é rico; 2) o PT tem dinheiro aos montes para comprar e liquidar faturas; 3) a ética da responsabilidade dá lugar à estética do marketing espalhafatoso; 4) o “Fome Zero” é um ícone do passado.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautor@gtmarketing.com.br

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