Velho, escroto, safado!

Bukowski tinha olhos miúdos de quem estava com sono ou gripe crônica, tinha também grande nariz borrachudo, sorriso tímido e ligeiramente cínico e queixo proeminente. Seria o último homem da terra a ser chamado de bonito. No conjunto, a sua cara com mais cratera que um pedaço da Lua era a versão antropomórfica de um cavalo albino triste. Cabelos da metade da cabeça para trás. A maior parte das fotografias o mostra velho, parecendo moleque tardio e, outras, bêbado e esculachado; em muitas posa ao lado de prostitutas ou com garrafas de bebida. Ou com as duas. Elas, as putas e as bebidas, foram grandes e fiéis amigas. Quem olha Bukowski vê Hank Chinaski, que se autodenominava velho safado. E não podia ser diferente, eles eram a mesma pessoa. Um na vida real, outro nos livros.

Bukowski foi um bom escritor americano. Começou a bombar quando deixou os Correios, aos 49 anos, e continuou a escrever, mesmo suspeitando que tudo tinha acabado. Escrevia sem parar, mandava para revistas e editoras e ninguém dava a mínima. Até uma dona, editora de uma revista, achar que o cara era gênio. Gênio é exagero, mas o sujeito, filho de uma alemã com soldado americano, tinha talento. E talento não nasce em árvore, é fruto de alguma coisa. Bukowski estudou jornalismo, sem concluir o curso. E tinha um prontuário e tanto.

Para começar, tinha um rosto marcado por inflamações, que o faziam cliente habitual dos hospitais públicos, cujos tratamentos não deram em nada. Bukowski continuou com a cara de cratera da Lua. Na escola era refugado pelos colegas de tão feio e desajeitado. Além disso, o pai alcoólatra por falta do que fazer tinha mania de espancar o filho para passar o tempo, diversão que o levou a ser odiado pelo resto da vida. Para sobreviver, foi motorista de caminhão e carteiro em Los Angeles. Para morar, escolheu a sarjeta. E para se divertir, álcool e putas. Nas horas vagas, lia Dostoievski e Hemingway. Estas coisas deram material para ele escrever.

Na casa dos cinquenta, Bukowski era bamba em coisas autobiográficas sem pudor, sem medir as palavras. E quando mudava de assunto, era para falar de coisas autobiográficas sem pudor e sem medir as palavras. Jim Christy, que escreveu um livro sobre o velho safado, acertou na mosca: disse que o cara foi vagabundo imprestável, proletário, pau d’água, um tipo de vida que rendeu bons escritores como Knut Hamsuns, Jack Lon- Velho, escroto, safado! Hank Chinaski continua o mesmo, feio, sujo e mamado.E com faro sem frescura para mulheres. don e Maxim Gorky, para ficar em alguns. Mas, ao contrário destes, Bukowski era engraçado. E podia acrescentar: escroto. Talvez o maior escritor escroto de todos os tempos.

Não tem como ler um parágrafo de Bukowski sem dar uma boa risada ou exclamar: ‘Que cara escroto!’. Era. E com talento. O certo é que a coisa pegou, o pessoal gostou, ele estourou. Ele continuou, sem mudar de vida e de estilo se é que aquilo fosse realmente um estilo. Quer dizer, a sua vida com putas e bebidas. Como diz um técnico de futebol esperto, não se mexe em time que está ganhando. E, assim, vivendo, bebendo e escrevendo, Bukowski passou dos setenta, deixando um saldo de 45 livros. Morreu em 1994. No lucro, para quem nasceu em 1920 e demorou uma vida para engatar.

O primeiro Bukowski que li foi em 1983.O primeiro publicado no Brasil, de carona com a onda beat, que estourou no País depois virar finada nos EUA. Cartas na Rua me fascinou pela falta de pretensão, pela espontaneidade, pelo coloquialismo, pela fala de rua, sem censura. Depois de ler um negócio daquele o sujeito pensa: deste jeito, qualquer um escreve. Engano, maluco! Atrás de toda escrotidão, obscenidades, relacionamentos baratos e porres homéricos havia duas coisas que sustentavam o resto: leitura e experiência de vida que, aliadas a um inegável senso de humor e ausência de autopiedade, fluíam para as páginas como uma uva. Em Bukowski, como em nenhum outro, as partes baixas sempre estivam em alta. Tanto a da frente quanto a de trás. Talvez por isso tenha encantado uma multidão de jovens pelo mundo afora. Jovem adora sacanagem e obscenidade. Os contos de Bukowski têm o apelo irresistível das piadas obscenas – é até possível dizer que nenhum outro escritor aproximou tanto uma categoria da outra. O certo é que assim, ele virou guru. Mas, embora pareça ralo, ele também tinha lá o seu jeito de demolir a hipocrisia e o falso moralismo fosse dos moradores das grandes cidades como Los Angeles e San Francisco ou das pequenas cidades do interior.

Como a história do anão que ficou com o melhor rabo da cidade. História simples, quase ridícula, destas que alguém já viu semelhante em algum lugar. A dona mais bonita duma cidade pequena dos Estados Unidos resolve se masturbar com o auxílio de uma garrafa de coca-cola, que entalou no genital e ela precisou ir ao médico. E como cidade pequena tem boca grande, todo mundo ficou sabendo. E nenhum rapaz quis namorar a garota para não ser conhecido como o namorado da garota da coca-cola. Resumindo, para não ficar sozinha com a garrafa de coca-cola, a garota encarou o anão que tinha um Cadilac. O anão era o cara mais feliz da cidade, porque os outros não paravam de pensar na garrafa de coca-cola. Chinaski não se conformava: ‘Bando de babacas, entregou o melhor rabo da cidade pro anão!’. Uma historia contada num ritmo quase hilariante e que revela a dimensão do provincianismo do meio-oeste americano.

Histórias assim transformaram Bukowski num grande escritor americano do século 20. Para quem gosta de literatura, como eu, achei um lugar para Mr. Chinaski na galeria de personagens impagáveis, com suas aventuras cotidianas em meio a ressacas, sexo e absoluta falta de perspectiva. Mário Bortolotto, que nestas alturas da vida estava em Londrina com seu Cemitério de Automóveis, bateu a mão num Bukowski, leu e encontrou seu guru. Quis entrar na toada. Não era fácil não se fascinar com Bukowski. Para ignorar o cara, o sujeito tinha de ser analfabeto ou chegado numa frescura. O resto embarcava.

Uma vez, numa universidade americana, perguntaram ao velho Hank se tinha bloqueios para escrever, se era difícil vir o tema, estas perguntas idiotas que se fazem a escritores famosos. A passagem está num livro – acho que em Mulheres. Bukowski respondeu que para escrever do jeito que escrevia era preciso apenas papel, máquina de escrever e uma garrafa de bebida. Com estas três musas, escrevia até pelado em cima dum iceberg no meio do oceano. Em certo aspecto, tem sentido. No entanto, embora pareçam, suas histórias não são apenas vômitos intermináveis de um devasso. Os seus contos têm um piedoso e quase triste humanismo, cheio de ironia e de pouca paciência com os otários, embora muitas vezes ele seja um deles.

Fiquei anos sem ler Bukowski, inteiro. Às vezes, com saudade, lia uns contos aqui e outros ali. Por volta de 1988, tinha me entupido dele. Fiquei de ressaca de tanto porre e safadeza. Aí, dias destes, peguei um na Fnac, aqui em Curitiba, li um conto e comprei. O conto sobre um tal Big Bart é o mais cínico e escroto já escrito sobre o Velho Oeste. E também um dos mais engraçados. Depois li outro que não pode ser chamado de conto, embora a estrutura seja, sobre a operação de hemorróidas que o autor fez. Uma via crucis. Aquilo sim é a fina flor da escrotidão. A vantagem de Bukowski sobre os escritores que se levam a sério, é que as ondas de existencialismo, estruturalismo, realismo fantástico, todas passam. A escrotidão é eterna. Não sai de moda. Você mesmo, leitor, aposto que conhece pelo menos meia dúzia de escrotos. Eles vão morrer, mas outros virão. É impossível eliminar da face da Terra a escrotidão, o álcool e as putas rampeiras. Por isso Bukowski será sempre atual.