‘Uma Noite em Sampa’ flagra a metrópole e sua gente

Uma Noite em Sampa trabalha de maneira hábil a paranoia urbana, o medo sem objeto definido, que paralisa e não deixa quem se sente ameaçado tomar decisões adequadas. É, sobretudo, um estudo sobre a espera e também fiel radiografia da mentalidade da classe média, que se colocou à frente do palco político nos últimos tempos.

“É incrível isso, porque comecei a escrever em 2013, quando as manifestações surgiram e não tinha a menor ideia de que o texto iria adquirir tamanha atualidade”, recorda ainda o diretor Ugo Giorgetti. Uma Noite em Sampa, que estreia nesta quinta-feira, dia 26, faz sutis referências a um determinado modo de ser do brasileiro, como o autoritarismo diante dos subordinados, a percepção de que se é dono do mundo e que todos os desejos devem ser atendidos sem mais demora.

Aquela história do “Eu estou pagando!”. À menor contrariedade, vem a frustração. Em seguida, a agressividade e, logo, o pânico. “Acho que algumas metáforas se tornaram também muito atuais, como a do ônibus cujo motorista sumiu, do veículo desgovernado, sem piloto, o mundo à deriva”, afirma o cineasta paulistano.

A paranoia do grupo é tanta que qualquer coisa pode assustar. Por exemplo, um homem que passeia com o cachorrinho pode estar planejando algo de mau para as pessoas. Pior ainda quando um grupo de sem-teto se aproxima, porque costuma dormir naquele local, e começa a cozinhar alguma coisa para comer. As relações entre classes se evidenciam e se acirram. Todos se afastam dos moradores de rua e olham com nojo o que cozinham. Menos uma senhora de idade, que está acompanhada da filha. A idosa faz amizade com o grupo de sem-teto e até aceita tomar uma sopinha com eles.

Outra cena é curiosa, e sintomática. Uma patroa foi com a empregada à peça de teatro e, preocupada com quem vai abrir a firma na manhã seguinte, pede à funcionária que tente sair daquele lugar e voltar para casa. “Não tem problema”, garante a empregada. E acrescenta: “Se eu conseguir uma condução, posso ficar com o dinheiro do táxi?”. Quer dizer, para sair daquele impasse, bastaria atravessar a rua e ir embora. Mas quem ousa?

Uma Noite em Sampa é, acima de tudo, um filme pensado nas dimensões da espera e da paralisia. “Um crítico fez relação com O Deserto dos Tártaros (romance de Dino Buzatti, filmado por Valerio Zurlini, de 1976). Fiquei honrado, acho que pode ser, todas essas influências estão aí, no ar”, adianta. Outros podem ainda ver alusões a Esperando Godot, de Samuel Beckett. Mas a referência mais evidente é ao clássico do surrealismo Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, no qual um grupo de burgueses não consegue deixar uma sala, sem qualquer motivo aparente.

Por que fazer um dos personagens citar esse filme em vez de deixar que os espectadores percebam por si sós? Ugo Giorgetti responde à pergunta com humor e fina ironia: “Para tirar o pão da boca dos críticos”, diz ele, sabendo que uma das diversões favoritas dos jornalistas de cinema é descobrir citações e alusões a outras obras dentro dos filmes.

Em meio a essa brincadeira, fala-se de algo muito sério e palpável – a indústria do medo, de como a sensação de temor é instilada nas pessoas, em seu cotidiano, no dia a dia de uma cidade caótica e desigual. “Você anda de carro e vai ouvindo os programas policiais, com a narração de crimes em cima de crimes. Na TV, a mesma coisa, com programas sensacionalistas. Tudo isso acaba gerando um medo que vai muito além do razoável”, acrescenta.

E há também a questão dos bairros da cidade. Os lugares tidos como seguros e outros estigmatizados. “Quando estamos no centro, então, o pânico é total, como se fôssemos ser atacados a qualquer instante”, lembra ainda o diretor. Ugo Giorgetti, que é colunista do Estado, é um cronista do centro de São Paulo, que ele evocou em seu documentário A Outra Cidade, falando do tempo em que a vida inteligente e civilizada acontecia justamente na hoje desvalorizada parte central da cidade.

Para essa grande encenação do medo da classe média, Giorgetti, além da locação única, usa um recurso original: alguns dos personagens são manequins, que “contracenam” com gente de carne e osso. Qual a razão do recurso? “Ora, eu vou dizer uma coisa que pode parecer estranha, mas é verdade, para mim, os manequins no filme funcionam mesmo como atores de verdade. Você nunca viu, por exemplo, um casal em que somente um deles fala, enquanto o outro se cala? Ou dois amigos, em que um tagarela o tempo todo e outro só escuta?”

Apenas isso? “Bem, os manequins são ótimos. Não reclamam, não se cansam nem temos de dar de comer a eles”, ri também Giorgetti.

Piadas à parte, o cineasta considera que a presença desses manequins representa uma quebra de paradigma narrativo. “A gente mostra que não está no domínio do realismo completo”, explica ele. De fato, a presença silenciosa daquelas figuras produz um efeito de estrutura, traz uma estranheza adicional, que é bastante interessante.

“Acho que deixa claro que tudo aquilo é muito mais uma fábula do que outra coisa qualquer”, avisa o diretor. Digo a ele que as fábulas não são inócuas, elas nos dizem respeito. “De Te Fabula Narratur.” As fábulas falam de ti, escreveu Horácio na Antiguidade.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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