Um outro (ou mais um) Leminski

Para mim, Leminski sempre foi um autor que insinua, constantemente, a relação entre cultura e formas específicas de discurso, por meio da crítica, do livre aproveitamento de suas leituras, da paródia, da semiótica, das citações e colagens, etc. Há, inclusive, uma relação paradoxal, pela qual o que é objeto de conversa criativa, torna-se, por vezes, exclusivamente, o conteúdo do discurso.

Só se pode falar de sua originalidade no interior de um trabalho de releitura e transposição de temas já utilizados. Há uma retomada constante da literatura “clássica” e seu distanciamento irônico e mesmo sarcástico que revelam sua modernidade, ou seu valor, ou sua ousadia, e que justificam o interesse por sua obra. Entre tantos motivos, que podiam privilegiar a irreverência ou a multiplicidade de Leminski, seu suposto papel de enfant terrible ou de crítico do establishement, é a sua consciência da literatura que parece sobressair.

Com a intenção de explorar a riqueza de sua relação com a literatura, farei uma breve tentativa de conduzir, por meio da análise de alguns temas de sua obra, ao discernimento de uma “poética leminskiana”.

A dificuldade em oferecer uma leitura unitária de uma obra tão ampla é evidente, ainda mais levando-se em consideração esse momento em que Leminski tanto tem aparecido e os desdobramentos dessa nova “recepção”.

A familiaridade com os clássicos se traduz no constante “estranhamento” de Leminski diante dos autores contemporâneos e na mistura dos gêneros. Ele demonstra, com freqüência, a sua “consciência” do próprio procedimento e é ele mesmo quem joga, em suas obras, com a metáfora do “estrangeiro”. Mas, à imagem da fala estrangeira, há o tema da ficção, “liberdade” do autor diante da verdade de seu discurso, que ele torna explícita mediante suas reflexões sobre a história, a filosofia, a mitologia, como nos casos do Catatau e de Metaformose; e por meio do jogo cerrado com certos procedimentos crítico-interpretativos, ou até mesmo do romance, como no Agora é que são elas.

Assim, Leminski exerce a releitura e toma por mira autores e obras, sem distinção. Com a consciência das particularidades da prosa, inverte os cânones do gênero e evidencia o caráter fictício desta escrita prosaica.

Quando Rimbaud disse: “Concluo por achar sagrada a desordem de meu espírito”, ele demonstrou compreender que, na desordem, há algo sem o qual a vida seria apenas insipidez mecânica. Assim, na copulação entre sapiens e demens tem-se a criatividade, invenção, imaginação… mas também criminalidade e maldade. Percebemos muito bem que o que chamamos gênio situa-se sob, além e aquém da alternativa razão-loucura, e que alguns grandes espíritos por vezes sucumbiram: Hölderlin, Nietzsche, Van Gogh, e nesse nosso caso doméstico, Leminski.

Isso me faz lembrar o poeta medieval François Villon, motivo de tantas mitificações devido à sua vida “errante” e que me leva também à definição de Rainer Maria Rilke da fama como “a soma de todos os equívocos”. Villon, como Leminski, foi um poeta crítico, filho de um tempo de crise. Mas é bom lembrar que os versos iniciais de seu testamento pretendem ser uma declaração de equilíbrio; “Ne du tout fol, ne du tout sage”.

Dito isto, podemos perguntar: o que é uma vida racional? Não existe nenhum critério racional para defini-la. No limite, pode-se perguntar se comer e viver de modo sadio, não correr riscos, nunca ultrapassar a dosagem prescrita significam realmente viver, ou melhor, se a via racional não é uma vida demente. Não é loucura pretender erradicar nossa loucura? A vida comporta um mínimo de desperdício, consumação (como chamava Bataille), gratuidade.

Ser racional não seria, então, compreender os limites da racionalidade e da parte de mistério do mundo? A racionalidade é uma ferramenta maravilhosa, mas há coisas que excedem o espírito humano. A vida é um misto de irracionalizável e racionalidade. Seria necessário aprender, de qualquer modo, a brincar com esta parte irracional de nossas vidas e saber aceitá-las.

Retomemos agora um aspecto existencial: o que é a vida? A vida é um tecido mesclado ou alternativo de prosa e de poesia. Pode-se chamar de prosa as atividades práticas, técnicas e materiais que são necessárias à existência. Pode-se chamar de poesia aquilo que nos coloca num estado segundo: primeiramente, a poesia em si mesma, depois a música, a dança, o gozo e, é claro, o amor. Prosa e poesia eram intimamente entrelaçadas nas sociedades arcaicas. Por exemplo, antes de partir em expedição ou no momento das colheitas, havia ritos, danças, cantos. Encontramo-nos numa sociedade que tende a disjuntar prosa e poesia e na qual há uma imensa ofensiva da prosa ligada ao desenvolvimento técnico, mecânico, cronometrado (as teses de doutrado) em que tudo se paga, tudo é monetarizado. A poesia tem, certamente, ensaiado defender-se nos jogos, festas, bandos de companheiros, nas férias. Cada um, em nossa sociedade, ensaia resistir à prosa do mundo, como, por exemplo, nos amores clandestinos, por vezes efêmeros, sempre erráticos. Em resumo, a poesia é a estética, o amor, o gozo, o prazer, a participação e, no fundo, é a vida! Mas o que é uma vida racional? Implica levar uma vida prosaica? Loucura! Mas somos obrigados a isso, porque se tivéssemos uma vida permanentemente poética, não a sentiríamos mais. É-nos necessária a prosa para que possamos ressentir a poesia. Sobre ela, gostaria de me referir àquilo que Georges Bataille denomina “consumação”, quer dizer, o fato de nos queimarmos num grande fogo interior, oposto ao mero consumo.

É preciso aceitar a “consumação”, a poesia, o dispêndio, o desperdício, uma parte de loucura na vida… talvez seja isso que constitui a sabedoria. Sabemos que a atitude de gozar – e entendo, por isso, que gozar a vida, curtir uma boa refeição, um bom vinho, implica, simultaneamente, a atitude de sofrer. De modo semelhante, a atitude para a felicidade implica a atitude para a infelicidade. O estado poético pode ser produzido pela dança, pelo canto, pelo culto, pelas cerimônias e, evidentemente, pelo poema.

Fernando Pessoa dizia que, em cada um de nós, há dois seres. O primeiro, o verdadeiro, é o dos nossos sonhos, que nasce na infância e que continua pela vida toda. O segundo ser, o falso, é o das aparências, dos nossos discursos, atos, gestos. Não diria que um é verdadeiro e o outro, falso, mas, efetivamente, a cada um desses dois estados correspondem dois seres em nós. A esse estado segundo corresponde o que o adolescente Rimbaud percebeu muito claramente, principalmente em sua famosa Carta do vidente: esse estado não é um estado de visão, mas um estado de vivência.

Poesia-prosa constituem, portanto, o tecido da vida. Hölderlin afirmava: “O homem habita a terra poeticamente”. Mas, de qualquer forma, em nossas vidas, convivemos com essa dupla existência, essa dupla polaridade. E podemos nos perguntar: onde se encontra a poesia hoje? Na poesia e em outros domínios adquirimos a idéia de que não existe vanguarda, no sentido de que a vanguarda traz algo melhor do que aquilo que havia antes. Talvez a idéia pós-modernista consista em afirmar que o novo não é necessariamente o melhor. Fabricar o novo pelo novo é estéril. O problema não reside na produção sistemática e forçada do novo. A verdadeira novidade nasce sempre de uma volta às origens. O objetivo que permanece fundamental na poesia é o de nos colocar num estado segundo, ou, mais precisamente, fazer com que esse estado segundo converta-se num estado primeiro. O fim da poesia é o de nos colocar em estado poético.

Tida Carvalho

é autora de O Catatau de Paulo Leminski: (des)coordenadas cartesianas, professora de Literatura Brasileira da PUCMG e doutoranda em Literatura Comparada pela UFMG.

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