Um editor chamado Ênio Silveira

O verbete Ênio Silveira na Wikipédia – enciclopédia virtual caótica, injusta como todo caos e por vezes equivocada – fornece míseras duas linhas que viram três numa folha de papel.

Ou seja, exatamente isto: ‘Ênio Silveira, (18 de novembro de 1925 – 11 de janeiro de 1996) foi um editor brasileiro e militante do Partido Comunista Brasileiro. Dirigiu por muitos anos a editora Civilização Brasileira. Sob a ditadura militar, editou numerosas publicações de oposição ao regime’.

E só. Quem lê não tem a menor ideia de quem foi o sujeito. As poucas linhas definem mais um Zé Ruela. Se fosse grande homem teria mais. E é a falta destas linhas que motiva escrever sobre Ênio Silveira.

Para dizer que foi o maior editor brasileiro, seja publicando pela Companhia Editora Nacional ou mais de seis mil títulos pela Civilização Brasileira, dois terços dos quais dedicados às ciências sociais e o resto memoráveis livros de prosa, teatro e poesia.

Não editou somente publicações de oposição ao regime, que é uma simplificação injusta. Foi muito além. Ele foi o primeiro editor moderno brasileiro a investir em boas capas.

O trabalho de Eugênio Hirsch, além de pioneiro, é de fazer estudante de artes gráficas babarem. Hirsch tinha o seguinte lema: ‘Uma capa é feita para agredir, não para agradar’.Aliás, por falar em Eugênio Hirsch, embora a internet disponha de algumas boas capas dele, o verbete na Wikipédia é também avaro.

‘Eugênio Hirsch (Viena, 1923 – Rio de Janeiro, 23 de setembro de 2001), foi um artista plástico brasileiro, nascido na Áustria, ilustrador, pintor e capista de renome internacional.Nascido na Áustria, emigrado em 1939 para a Argentina e em 1955 para o Brasil. Foi diretor de arte da Civilização Brasileira’.

Voltando a Ênio, ele investiu em títulos e autores que só iam aparecer nas livrarias brasileiras se algum louco bancasse. Ele bancou. Foi responsável pelo surgimento, difusão ou amadurecimento de uma geração de escritores, entre os quais se encontram os paranaenses Domingos Pellegrini e Dalton Trevisan. Além de capas criativas, Ênio investiu em boas traduções – algo que a Editora Globo de Porto Alegre já vinha fazendo há bom tempo.

O editor pagou adiantado para Antônio Houaiss traduzir Ulisses, de James Joyce. Isto na primeira metade dos anos 60. Se pagar bem para traduzir não é um hábito popular hoje em dia, imaginem naqueles dias. Todo mundo apostava no fracasso da obra. Era 1966.

A tiragem de 8 mil exemplares esgotou rapidamente. O certo é que Ênio transformou Ulisses em best-seller que poucos leram, mas muitos compraram, porque, afinal, ter um Ulisses em casa ainda hoje é sinal de distinção literária.

Se fosse se pautar pelas regras dos editores de hoje em dia (‘se não der lucro, estou fora; arriscar eu não arrisco’), não publicaria Ulisses e 80 por cento das coisas que publicou.

O mesmo foi feito com a tradução dos cinco catataus de O Capital, de Karl Marx. Um investimento na formação intelectual de uma geração. Ênio cometia o primeiro e maior pecado de um editor contemporâneo no Brasil: arriscava. E não tinha medo de aventurar. Claro que perdeu dinheiro, claro que também ganhou muito.

Mas as perdas, na realidade, estão longe das qualidades dos livros que publicou e mais por conta dos humores da censura. Afinal, edições inteiras foram apreendidas por trazerem conteúdo ofensivo ao código político ou moral vigente.

Ele publicou livros que eram considerados provocadores, mas também gente do cacife de Jean-Paul Sartre, Bertrand Russel, Herbert Marcuse, Ernest Hemingway (Paris é uma festa foi traduzido por ele mesmo), F. Scott Fitzgerald, Julio Cortazar, Manuel Scorza, Vladimir Nabokov, Franz Kafka, William Faulkner, Bertolt Brecht, além de dezenas de brasileiros e outras dezenas de estrangeiros.

No balaio da Civilização entrava pensador de esquerda, como Antonio Gramsci, ou de direita, como Raymond Aron. No catálogo tinha intelectual como Paulo Francis ou nada intelectual como José Louzeiro, que Ênio transformou de repórter policial em escritor de sucesso.

Aliás, um dos poucos escritores de quem guardou mágoa. Quando o editor estava numa pior em vez de Louzeiro mostrar gratidão mudou de editora deixando um ‘desculpe, bicho. Mas é a vida’. Quem pensa que só editor é ingrato, se engana.

A luta contra a ditadura foi faca de dois gumes para Ênio. Se por um lado servia de marketing político e ideológico – os livros da Civilização Brasileira traziam o que havia de melhor no mundo e no país naquele tempo, mas também textos críticos a regimes autoritários, ganhando simpatia de uma legião de leitores que combatiam a ditadura com devaneios retóricos ou pequenas ações cotidianas – também acarretou enormes prejuízos financeiros com uma perseguição sistemática.

Para se ter uma idéia, os militares prenderam Ênio Silveira sete vezes, confiscaram várias edições de seus livros, bloquearam seu acesso aos bancos, tornaram quase impossível sua sobrevivência econômica. Era uma questão de tempo capitular.

Com este prontuário, alguém pode imaginar que Ênio fosse um esquerdista barbudo e carrancudo. Ele podia ser comunista, mas não era brega e tampouco ostentava o estereótipo do esquerdista furibundo e grosso para honrar os versos de Brecht: ‘Uma testa sem rugas é sinal de indiferença’.

O editor fumava cachimbo, usava tweed e gravata, meias e sapatos combinando. Era de uma geração fascinada por Paris e considerava Nova York um amontoado de sujeitos cafonas e pretensiosos.

Ênio tinha o perfil de um burguês e não era tolerado em alguns ciclos subterrâneos da esquerda. Era um sujeito culto e bem humorado. Um belo dia desfez a sociedade na Companhia Editora Nacional. Aí acontece de Ênio ser preso nos anos 60.

O oficial quis saber a origem do rompimento com o sogro. Ênio respondeu: foi sexo. O oficial já estava achando que tinha homossexualismo no meio. Ênio completou: ‘Eu queria publicar um livro sobre educação sexual e ele foi contra’. Só rindo.

Ênio gostava de ler os livros que editava a ponto de escrever centenas de orelhas de livros, apresentando a obra. Embora fosse simpatizante stalinista, publicou livros de Leon Trotski, conquistando antipatias na turma. Era um tipo de sujeito que não há mais.

Era o lado de uma moeda em cuja face oposta estava Alfredo Machado, o industrial, homem com preocupações de publicar livros para o leitor médio, cujo gosto é arredio a novidades estéticas ou literárias.

Outro grande editor, Jorge Zahar, diz que ‘Alfredo Machado tinha imensas qualidades, além da preocupação salutar de pagar bem seus autores, mas o fenômeno cultural não lhe dizia respeito’. Fenômeno cultural era com Ênio.

‘Quanto a José Olympio, seu problema era o hábito de incensar os poderosos’, sapecou Zahar. Ênio criou a Revista Civilização Brasileira, um livro periódico que chegou a ter tiragem de 20 mil exemplares, reunindo gente de todo espectro ideológico.

O sociólogo Octávio Ianni, um dos colaboradores da revista, sintetiza: ‘Ênio era flexível. Não surgiu ninguém para substituí-lo porque aquele clima intelectual se extinguiu’.

Enquanto o poder editorial de Ênio Silveira decaiu o de Machado cresceu. A Civilização Brasileira foi literalmente engolida pela Record, criada nos anos 40 como uma distribuidora.

Machado comprou não só a editora de Ênio e seu catálogo, como muitas outras com seus catálogos valiosos e fez uma poderosa holding. As outras editoras de hoje tentam seguir os seus passos, não os de Ênio. Os de Machado. Estão preocupadas com mercado e nichos. Assim caminha a humanidade. Como disse Ianni: uma época se foi.