Um barreado em ritmo de feijoada

O jornalista Dante Mendonça seria suspeito de inventar a feijoada se tivesse vivido no Brasil colonial, quando a iguaria nacional veio a lume, para deleite de gerações futuras, brasileiras e estrangeiras. A feijoada, diz a lenda que não se sustenta em pesquisas, foi criada por escravos que botaram aleatoriamente no feijão pedaços de porco que a Casa Grande rejeitava. No final, a senzala produziu uma comida deliciosa que os senhores do engenho, de tanto verem os escravos lambendo os beiços, entraram na onda. E não saíram mais.

Esta sugestão ocorre ao ler o novo livro de Mendonça, Serra abaixo, serra acima – O Paraná de trás pra frente (Bernúncia Editora, 351 págs, R$ 50,00) a ser lançado na manhã do próximo sábado (13), no Passeio Público, em Curitiba. A reunião de fatos, causos e acontecidos no Paraná, alguns à margem da história e outros nem tanto, produz uma obra que, se está longe de ser completa e definitiva, ao menos é deliciosa, interessante e chance para um mergulho em nossa história.

Está é uma das virtudes do livro. Outra é engrossar a mirrada bibliografia de assuntos paranistas, mirrada em comparação com vizinhos São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Ao colocar pé de porco neste pote de feijão, Mendonça faz coisa digna de recepção com banda polaca, fanfarra alemã ou Filarmônica de Antonina. Enquanto gaúchos têm como passatempo falar de sua gente, de sua história, de sua terra, de sua cultura, de suas tradições e também de seus umbigos, o paranaense se retorce todo para contar um tiquinho do acontecido. Paranaense é dissimulado.

Outra qualidade do livro é o humor. Empiricamente uma história bem humorada atrai público maior e mais cativo que uma história mal humorada. Temos aí o Luís Fernando Veríssimo – gaucho, jornalista e cartunista – que não deixa ninguém mentir sozinho. É nesse ritmo que desfilam causos, manias e símbolos de cada região, como o Cristo de Guaratuba, entre outros. Afinal, se o livro se constrói no ritmo de humor e feijoada – e não do barreado, orgulho culinário araucariano, made in Morretes ou Antonina, muito presente no livro e curiosamente introvertido, tem que ser enterrado para ninguém ver antes da hora de comer – a realidade é que o Paraná, ao contrário do Rio Grande e São Paulo, também foi construído com o planejamento de uma feijoada. Cada povo botou um ingrediente.

O sul tradicional, enclave gaúcho no Oeste, o Norte anexo cultural e emotivo de São Paulo e no centro o condado de Guarapuava, onde ainda hoje cavalheiros medievais se digladiam em cavalhadas por prendas preciosas ou coisa parecida. O Paraná, como sua história, é difícil de juntar num conjunto harmônico. As histórias esparsas têm mais contrastes que semelhanças. O estilo de Mendonça baila a mesma polca, fragmentado, juntando narrativas, dicionários, causos, com ilustrações de Bennet. Não que seja novo. Nos livros anteriores Mendonça já trazia esta marca, disfarçada porque gravitava sobre um tema. No livro sobre bar, tudo gira sobre o recinto. O mesmo com o livro posterior sobre os polacos e o seguinte sobre Curitiba. Mas o Paraná é uma colcha de retalhos e o autor explora a diversidade da maneira mais simples, deixa que cada região olhe o resto como se cada uma fosse o centro do território.

O livro tem pedaços que diferem um do outro, mas o conjunto tem o mesmo sabor. Há o resgate de episódios curiosos como a Batalha de Itararé do Norte do Paraná, que foi a invasão dos assírios, nos anos 20. Uma invasão que nunca houve, mas que gerou bate boca e diz-que-diz na província. O dicionário do dialeto pontagrossense e abordagens cômicas como a de Guarapuava ser uma fábrica de ventos, úteis para impulsionar caravelas. Ou a mania das cidades paranaenses serem capitais de alguma coisa, incluindo Cambori&uacut,e; – belo balneário catarina anexado para ser a Capital dos Aposentados do Paraná.

Serra abaixo tem, ainda, a virtude de não ser pretensioso. Está longe de ser completo, até porque, se fosse, seria injustiça, não deixar um pouco de orelha de porco para outros fazerem também a sua feijoada. Munido destes poréns, o leitor atravessa as páginas do livro do começo ao fim refletindo sobre o nosso tímido Estado. Para neófitos, porta de entrada sem traumas e com humor ao paranismo.