“Soldado Anônimo” explora a guerra dos Bush

Nos cinemas brasileiros, chama-se "Soldado Anônimo". No original, é "Jarhead", que pode ser definido como ?milico?, mas cujo significado é mesmo cabeça de jarro. Logo no começo de "Soldado Anônimo", o instrutor berra com o personagem de Jake Gyllenhaal e diz que ele não deve pensar, que vai encher aquele jarro de m… O novo filme de Sam Mendes reabre a trilha de Stanley Kubrick em "Nascido para Matar". O treinamento militar não é só duro. Como o de Kubrick, o instrutor de Mendes enche os recrutas de desaforos e palavrões para expressar um tema que não deixa de ser kubrickiano – a exposição do fim do mundo explicada pela dissolução do único elo que une e organiza os homens, a palavra. Durante duas horas, o espectador assiste ao esvaziamento das cabeças de jarro. Mais tarde, na impressionante cena em que os soldados assistem a "Apocalypse Now", de Francis Ford Coppola, e a sessão é interrompida porque eles vão partir para o Iraque, fica perfeitamente claro o que o diretor de "Beleza Americana" quer dizer.

Consagrado no teatro, Mendes estreou no cinema com aquele trabalho supervalorizado, que ganhou, entre outros, os Oscars de melhor filme, diretor e ator (James Spacey) – três estatuetas douradas que, de maneira muito mais justa, deveriam ter ido para o poderoso "O Informante", de Michael Mann, com Russell Crowe. Veio em seguida "Estrada para a Perdição", que tinha impacto visual, mas cujo classicismo era um tanto artificial. Mendes volta-se agora para a primeira guerra do Iraque, a de George Bush (pai), quando os americanos alegadamente invadiram o país a pedido dos governantes do Kuwait para proteger o vizinho do intervencionismo de Saddam Hussein. Claro que foi só fachada e, da mesma maneira como os soldados são estimulados a falar em pátria e liberdade e a rotular Saddam como ditador, também há um, mais consciente, que põe as coisas em perspectiva, dizendo que aquilo não tem nada a ver com direitos dos povos nem democracia – é uma questão de petróleo.

Na cena em que assistem a "Apocalypse Now", os soldados acompanham, cantando, a "Cavalgada das Valquírias" e urram cada vez que um vietnamita é abatido com as bombas de napalm. E eles gritam que querem matar Saddam, que os iraquianos têm que ser estraçalhados, que eles, os fuzileiros, são os maiores. O cinema presta-se a essa ambivalência – a ópera cinematográfica de Coppola comporta essa reação, ou interpretação, mesmo que o efeito pretendido pelo cineasta seja outro. O cinema só evita a ambivalência quando é didático e aí se apequena como obra de arte. Mendes filma a primeira invasão do Iraque para explicar a segunda. Faz obra de referência, citando Kubrick, Coppola e até aquela visão da classe média que ele próprio exorcizou, criticamente, em "Beleza Americana". A fala do soldado é exemplar. Ele diz que, na guerra, o soldado é treinado para viver com seu rifle, que vira sua extensão. O rifle serve para matar e a frustração desses soldados anônimos é que, conhecendo todo o horror da guerra, eles não alcançam sua catarse, matando. E Gyllenhaal diz – "Não importa o que você faz com as mãos, depois. Se faz amor, constrói uma casa ou troca a fralda de uma criança. A experiência do rifle permanece em sua vida." "Soldado Anônimo" é forte.

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