Pequena memória para um tempo sem Gonzaguinha

d11.jpgUm ponto de exclamação. Pela vida. Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior tinha fé, acreditava na humanidade, sobretudo no homem do Brasil. Por isso mesmo, escrachava com tantos daqueles que procuravam vendê-lo, com a mesma pungência com que tratava de abrir os olhos dos que eram vendidos. Mas Gonzaguinha subiu prematuramente, quando seu carro desatinou, após um show no interior do Paraná. Foi na madrugada de 30 de abril de 1991. Quanta sabedoria nos traria nesses tempos de falácias e desencantos, no alto dos 60 anos que completaria neste dia 22.

Em 80, era a Anistia, a Abertura, uma liberdade pequena, ainda economicamente cerceada. Nos versos de Achados e perdidos, metaforizada como uma ?pequena marginal dessa imensa avenida Brasil?. Liberdade em nome da qual tantos ?se entregaram por um novo dia?, e que, do seu jeito, só valia também em tom maior, quando ?o nosso coração sinta/através do respeito/o que é ser/profundamente/ uma pessoa da maior liberdade?. Então, era bem mais do que questionar aquela propaganda oficial na introdução de A marcha do povo doido, que, em tons carnavalescos, falava sério: ?Anistia que não permitiu ao anistiado ser reintegrado a seu trabalho?.

Ah, o trabalho. Tivesse Vargas um Gonzaguinha, e seus discursos sairiam do populismo com uma graça, um lirismo e uma verdade inimagináveis para um caudilho. ?Eu acredito é na rapaziada/Que segue em frente e segura o rojão?, samba, cheio dessa fé que é para poucos, em E vamos à luta. Ou Trabalho e festa, que prega o direito ao prazer associado ao ato laboral: ?Pro homem pra quem o trabalho é festa/todo dia é de festa, é mais mió?. Eita nós…

E (re)conhecendo a intimidade dos tais sentimentos humanos por onde os tais relacionamentos, com uma feminilidade digna de Chico Buarque, ganham voz em forma de Pontos de interrogação, Mulher e daí, Grito de alerta, Minha amada doidivana, Românticos do Caribe, Diga lá, coração, Sempre em teu coração, O começo, Santa Maravilha… É, não dava pra segurar tanta poesia que, após uma noite de êxtase, buscava a dor das manhãs, tendo que começar tudo outra vez, sempre.

Gonzaguinha representava seu País com o suicídio profissional e santo de um ?João do Amor Divino? que já morrera… Pra logo depois dizer que ?acreditava na vida? e que ?pensava que era um guerreiro?, no sambão autobiográfico Com a perna no mundo. Ao sair dos cueiros dos padrinhos, primeiro foi ter com os bambas do Estácio. Depois, estudante de Economia, foi ser do MAU -Movimento Artístico Universitário, ao lado de Ivan Lins, Aldir Blanc e outros bons. E desse mal do bem, foi soltar o gogó de eterno aprendiz, sendo censurado e condenado a viver sob o estigma de cantor de protesto.

Uma injustiça. Musicalmente, como poeticamente, Gonzaguinha também explodia sua liberdade, misturando sons, cordas e guitarras, rocks, sambas, valsas, xotes e maracatus, como quem mistura as classes e as raças que conheceu entre o pai (adotivo, dizem alguns), o sempre viajante Gonzagão, e a mãe (esta sim adotiva, sua mãe de carne morrera quando tinha dois anos) Dina, sempre à sua espera no morro do São Carlos. ?Juntos estamos no palco/das ruas nas grandes cidades?, declarava, renovando seu discurso brechtiano em Artistas da vida. A injustiça era limitar uma obra tão vária e bonita. Uma luta e uma alegria de ?ser, fazer e acontecer? que continuam necessárias, ?simples como a água?, de mergulho numa vida ?em nossas mãos?, para cada um construir ?a coisa mais maior de grande?, a pessoa, por mais que muitos se esqueçam disso. 

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