Pedofilia, incesto e paixão

Tio Peck é o tipo de parente que toda criança ou adolescente gostaria de ter por perto: paciente, sensível, companheiro, cúmplice. Sempre disposto a intervir em favor dos pequenos diante dos adultos, nunca se irrita com as travessuras que as crianças aprontam. “Nada que você fizer pode me fazer sentir vergonha de você”, diz ele a um sobrinho durante uma pescaria, quando o garoto chora por um peixe fisgado.

A cena da pescaria, que bem poderia ser apenas um bucólico encontro entre tio e sobrinho numa tarde de verão, é a metáfora perfeita da habilidade do tio Peck em “fisgar” outras criaturas, de como fascina e seduz as crianças. Este é o argumento da peça Como Aprendi a Dirigir um Carro, adaptação do texto de Paula Vogel que a Sutil Companhia de Teatro, de Felipe Hirsch, estréia hoje às 21h no Teatro HSBC.

A história é contada a partir das reminiscências de uma mulher de 35 anos, madura e sensata, conhecida pelo apelido de “Li’l Bit” (Christiane Macedo). É com um certo ar de satisfação que ela lembra de uma noite perfumada de 1969, quando tinha 17 anos: Li’l Bit estava com um homem num carro, negociando até onde ir sexualmente. Só que esse homem era trinta anos mais velho, e casado com a irmã de sua mãe. Essa relação com o tio Peck (Zeca Cenovicz), que já durava algum tempo, tem início quando a menina começa a ter aulas de direção.

A narrativa salta no tempo, retrocedendo até a infância da garota, e avança até a vida adulta emocionalmente paralisada de Li’l Bit. O surpreendente, porém, é que o relato denuncia uma bela história de amor, por chocante que pareça. O texto, escrito pela americana Paula Vogel em 1997, foge do maniqueísmo primário, não demoniza o tio “tarado” – pelo contrário, o romance é tratado com muita delicadeza e até humor. “As coisas não são tão simples”, resume o diretor. “Paula Vogel é de uma inteligência impressionante, consegue um equilíbrio ao mostrar paixão numa relação perversa. E é muito chocante ver a paixão de uma pessoa dessas, você não espera ver a vítima apaixonada, fascinada pela formação que recebe do tio”.

O diretor conta que teve acesso ao texto em 1997, quando Ana Beatriz Nogueira assistiu ao espetáculo no circuito Off-Broadway. “Há cinco anos que eu brigava por esses direitos, e acabei comprando no ano passado por uma fábula [R$ 20 mil mais uma porcentagem da bilheteria]”, revela. Mas segundo ele, vale a pena: “Apesar de recente, o texto de Paula Vogel já é um clássico: ganhou todos os prêmios da dramaturgia mundial em 1997, e influenciou muitos textos que vieram depois”, conta. Marco Nanini é seu sócio no empreendimento.

Felipe avisa que a montagem que estará no Palácio Avenida ainda não é um espetáculo acabado. “É um projeto de estudo com esse texto, um work in progress. Tanto que as sessões deste final de semana serão uma espécie de ensaio aberto, eu vou subir no palco e debater com o público a possibilidade de uma montagem mais aberta. Quero sair dessa lenga-lenga de espetáculos redondinhos, onde você senta para ouvir uma história, uma ilusão efêmera. Quero discutir o teatro de uma maneira mais inteligente, menos tímida”.

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Como Aprendi a Dirigir um Carro, texto de Paula Vogel e direção de Felipe Hirsch. Com Christiane Macedo, Zeca Cenovicz, Edson Rocha, Marisia Brunning, Mauricio Vogue e Monica Placha. Em cartaz até dia 4 de agosto – na primeira semana de sexta a domingo, e nas duas seguintes, de quarta a sábado. De quarta a sábado, o espetáculo começa às 21h, e no domingo, às 20h. Ingressos a R$ 15 e R$ 7 (meia). Clientes do HSBC têm 25% de desconto. Mais informações pelo telefone (41)321-6528.

A volta do filho pródigo

Celebrado como menino-prodígio, disputado a tapa pelos melhores atores, Felipe Hirsch volta à terra natal depois de dois anos. Ausência ilustre dos dois últimos Festivais de Teatro de Curitiba, ele conta que fez oito temporadas em São Paulo e quatro no Rio nesse meio tempo.

O diretor até foi convidado para o FTC 2002, quando apresentaria Memória da Água, mas estava com quatro espetáculos em cartaz, “e os produtores manifestaram muito interesse em continuar no circuito Rio-São Paulo”. “Eu gostaria muito de ter vindo, até porque me criei no Festival”, comenta.

De fato. Sua montagem A Vida é Cheia de Som e Fúria, apresentada no Fringe do FTC 2000 conquistou o Brasil, transformando-o em fenômeno instantâneo. Sobre essa peça, outra memory play adaptada do livro Alta Fidelidade, de Nick Hornby, Felipe reconhece: “A Vida… foi decisiva na minha carreira. Ela foi assistida pelas pessoas certas, no lugar certo e na hora certa”. E o Festival de Curitiba? “Agora está mais tranqüilo, de repente em março a gente está aí de novo”.

O diretor tem outro projeto em gestação: “É uma peça punk, a idéia é contar a história de alguns amigos meus, que eram punks mas ao mesmo tempo tinham interesse pelos ensinamentos orientais, punks com uma cabeça diferente”, adianta. Nesse time figuram Marcos Prado, Leminski, Rodrigão (o cantor e compositor Rodrigo Barros Homem Del Rei, parceiro de Felipe em várias trilhas) e outros. “Vamos colocar uma banda punk no palco, e vai ser o Beijo AA Força”, garante.

Ele aproveita a deixa para falar um pouco da cena cultural da sua terra: “Eu falo muito bem de Curitiba lá fora, digo que vai tudo bem com a arte na cidade… ou seja, minto. E aqui eu falo muito mal, para que a gente melhore cada vez mais”. Mas Curitiba tem alguma chance de um dia deixar de ser província e entrar de fato no circuito nacional? “A gente tinha tudo para ser realmente grande, mas o problema básico é que nas células artísticas – da música, do teatro, da literatura – ainda impera uma mentalidade muito limitada. Ainda tem que morrer muita gente”. (LP)

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