Peça revê mítica rivalidade entre Mozart e Salieri

Há mentiras que se tornam verdade. A tal ponto que passa a importar pouco que tenham acontecido ou não. Ao escrever Mozart e Salieri, o russo Aleksandr Pushkin tratava da relação entre os dois compositores, instaurando entre eles uma mortal rivalidade. Nos anos 80, quando Peter Shaffer lançou a peça Amadeus, que posteriormente inspiraria o filme premiado de Milos Forman, a disputa entre os dois artistas voltou à berlinda.

Estudiosos da música clássica já tentaram soterrar a tese: Salieri tinha mais fama à época do que Mozart e não teria motivos para odiá-lo. Mas a narrativa do tal desentendimento – seja ele realidade ou ficção – continua a inspirar novas obras. Um Réquiem para Antonio, que estreia na quinta-feira, 16, no Tucarena, também esmiúça o conturbado relacionamento entre os personagens históricos.

Escrito por Dib Carneiro Neto (autor de Salmo 91), o texto merece versão de Gabriel Villela. E transporta o pretenso episódio da Viena do século 18 para um atemporal picadeiro circense. “A opção por uma gramática cômica vem acentuar o aspecto mais grotesco dos personagens”, comenta o diretor mineiro, que completa 25 anos de carreira em 2014.

Foram os atores Claudio Fontana e Elias Andreato, protagonistas da montagem, que pediram ao autor um espetáculo teatral sobre o tema. “Muita coisa mudou, mas o incômodo em relação ao sucesso do outro persiste. Ou até se acentuou com os atuais mecanismos de exposição da vida privada”, observa Elias Andreato, responsável pela interpretação do italiano Antonio Salieri.

Se o mote da inveja entre os músicos não é novo e já serviu de subsídio para outras criações, o que diferencia o novo espetáculo é a maneira de narrar. “Não existe uma história linear”, pontua Carneiro Neto. “Minha contribuição é menos em relação ao enredo e mais em relação à estrutura, à forma.”

Para não incorrer no erro histórico nem ver-se enredado na velha querela sobre a veracidade do fato, o escritor fez com que todas as ações do espetáculo sejam um delírio de Salieri. “Aqui, tudo se passa dentro da dentro da cabeça dele.” Em seu leito de morte, ele relembra acontecimentos e tem um encontro imaginário com Mozart – que viveu muitos anos menos e já estava morto naquele momento.

“Escolhido esse jeito de criar, posso me defender da maneira como as pessoas irão interpretar a peça. Estou lidando com um mito”, ressalva o dramaturgo.

Em sua contribuição a essa “mitologia” moderna, Gabriel Villela utiliza uma visão particular: transforma os compositores em clowns, transfigura seus rostos com tinta branca e um nariz de palhaço em cada um. “O nariz vermelho é a menor e mais poderosa máscara do mundo. Um pequeno adereço, mas que serve para eliminar qualquer psicologismo da trama”, comenta o encenador.

Nesse enfrentamento, a figura de Mozart ganha tons mais luminosos e uma forte conotação infantil – tanto na voz quanto na natureza de seus comentários. Já Salieri surge no palco como um amargo bufão, em cores mais escuras e gestos menos harmoniosos. “Tanto a peça de Shaffer quanto o filme lidam com o lado mais sublime, enfatizando a arte dos dois. Eu queria ir para o outro lado: tratar do limbo, do obscuro”, observa Villela.

A imaturidade de Mozart bem como sua pretensão à escatologia foram frisadas. Seus comentários dão conta de perversões sexuais e detalhes da fisiologia humana. Já Salieri tem seu aspecto carola acentuado. Também sua religiosidade, traço largamente abordado pelo longa Amadeus, é retomado na peça. “Muitos componentes dessa história não existem. Mas o que realmente existia, por parte do Salieri, era um grande ressentimento em relação à genialidade de Mozart. Um sentimento de que havia uma injustiça: não apenas na Terra, mas também no Céu”, crê o dramaturgo.

Os palhaços do diretor foram construídos a partir de uma miríade de referências: da Commedia dell’arte italiana, do cinema de Federico Fellini e dos sátiros da tragédia grega.

A herança grega pode ser reconhecida ainda no palco em formato de arena. Ele não remete apenas ao circo, mas aos anfiteatros da Grécia Antiga. “O espaço público do mito é a arena, é lá que esses mitos podem conversar”, diz o diretor.

Ao lidar com a inveja, o espetáculo inevitavelmente evoca a tradição cristã e aqueles que são considerados os pecados capitais. O teatro de Shakespeare é outro dos pontos de apoio da encenação. Tanto no drama histórico Ricardo III quanto na tragédia Macbeth (dois textos, aliás, recentemente montados por Villela) são a ambição desmedida e a cobiça os motores da rede de assassinatos e crimes que é posta em movimento.

Além da estética abarrocada, o uso imaginativo da música é uma das marcas da estética do encenador. Para ressaltar ainda mais a ausência de vínculo com a realidade e sua liberdade criativa, a trilha sonora excede o universo dos compositores clássicos em questão e abraça referências populares, como Tom Jobim.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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