O sistema

Ele sempre jurou inocência. Envolvido em nebuloso processo kafkiano, como se vivesse terrível pesadelo, sem saber como nem por quê, o pobre moço foi julgado e condenado. Envolto em aflitivo ciclone existencial, passou, então, a comportar-se como autômato, quase insensível às revoltantes injustiças que se perpetravam comtra ele e que se sucediam em cadeia.

Ao parar defronte ao presídio, estancou e, como em sonho, pareceu-lhe ver escritos, no frontispício, aqueles versos do inferno de Dante: Lasciate ogne speranza, voi ch’entrate… (Deixai para trás qualquer esperança, ó vós que entrais…) Um empurrão da escolta fez o prisioneiro sair do torpor momentâneo e seguir em frente.

Deixou seus pertences com o guarda da portaria. Tiraram-lhe as algemas (e a esperança) e o empurraram mais uma vez para que entrasse pela porta que dava para uma galeria imensa, com celas de ambos os lados.

Alvo de graçolas dos detentos, enquanto caminhava em direção à própria cela, parecia não ouvir as provocações que vinham de bocas desdentadas, figuras patéticas:

– Vem aí carne fresca pra gente!

– Oi, gracinha! Venha aqui dar um cheirinho no papai!

Um homem grandalhão, com uniforme de preso, camiseta regata, com tatuagens nos braços e ombros (elemento de confiança da administração do presídio), que varria o pátio, ao escutar os gracejos, virou-se para ver o novato e fez cara feia para os provocadores, fazendo-os calar-se.

Os dias que se passaram no cárcere foram, para John, verdadeiro pesadelo. Alguma coisa indefinida, um não sei o que de sinistro, pairava no ar, causando-lhe na alma indizível sentimento de medo e de revolta. Não falava com ninguém, não reagia aos insultos e caçoadas. Certa ocasião, na hora do banho de sol no pátio, um bando de internos mal encarados fez um círculo em torno dele e começou a passar-lhe as mãos na cabeça, nos ombros, nas costas… De repente, um safanão jogou por terra os três agressores mais afoitos, enquanto os demais se safavam, correndo. Seu salvador era aquele sujeito imenso, preso de confiança, que estivera varrendo o pátio no dia da chegada de John. Pôs afetuosamente a mão no ombro do rapaz – o que lhe causou asco e repulsa – e o conduziu até a cantina, onde lhe ofereceu um café, prontamente recusado. “Ninguém aqui vai pôr a mão em você, camaradinha! – disse-lhe seu protetor. Quem fizer isso vai se haver comigo!” Tais palavras, longe de ser um consolo, soavam-lhe como ameaça, imposição de uma proteção que ele não queria e não aceitava.

Entre os detentos, havia um jovem de 22 anos, Mike, condenado por estelionato, com quem o moço fizera amizade e a quem confidenciara o pavor crescente que a vida no presídio lhe causava. Sentia iminente perigo à noite, na cela, no refeitório, no banho de sol. Enfim, em toda a parte. Alguma coisa indefinível pairava no ar e lhe oprimia o peito, com o peso de uma jamanta.

Não vou agüentar. Eu sei que vou morrer! Dizia o rapaz.

– Não fales assim, amigo. Nada de mal vai te acontecer! “O essencial é invisível aos olhos!” Não importa o que fazem com teu corpo. Tem fé! Tua alma é indevassável e intocável. Eles podem matar o corpo, a alma não! E isso é o que importa!

Naquela noite, ninguém ouviu os gritos de terror do pobre John ao ser violentado por seu protetor grandalhão, que o conduzira até a despensa, trancando a porta.

Mike bem que tentou. Usou de todos os argumentos possíveis para convencer o rapaz de que sua vida não tinha acabado. A dimensão humana transcende a essência física. O corpo é apenas matéria – repetia ele, insistentemente. O homem, quer queira, quer não, independentemente de sua ideologia, tem, felizmente, uma alma imortal. Esta, os mecanismos do sistema não conseguem atingir. Ele precisava pensar nisso, acreditar nisso. Ter coragem e resistir, com paciência e com fé. Logo, logo, sairia da prisão e, de novo, seria livre como um pássaro, recobrando a alegria de viver!

Dias depois, logo cedo, o corpo do infeliz foi encontrado estatelado numa poça de sangue, no pátio do presídio. Ele não acreditava no sistema. E, lá do alto do terceiro pavimento, atirara-se para a morte, apressando o momento de sua libertação.

Pobre John, pobre vítima do sistema!

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