O Novo Pai

Temos observado uma série de mudanças em nossa sociedade. Uma das mais marcantes é a forma que os homens estão agindo na posição de pais. O que há algumas décadas seria estranho e talvez até considerado ridículo, é cada vez mais aceito e, até mesmo, cobrado. Ninguém mais questiona a masculinidade de um homem que troca fraldas, dá mamadeira e leva o bebê para passear. Ao contrário, essas atitudes são encorajadas pelas mulheres em geral, pela mídia e até desejadas pelos homens. Embora sintam-se cobrados a terem tais atitudes, muitos estão realmente dispostos a um maior envolvimento, físico e emocional, na criação de seus filhos. Culturalmente, a mãe é uma figura idolatrada e poderosa. Parece que, por muito tempo, existia nos homens um desejo reprimido de ser mãe (não como mulher, mas no sentido de cuidar de alguém), e agora esse desejo pode se manifestar livremente.

Um dia desses me deparei, em minha própria casa, com uma novo nome para denominar esse novo pai, que funde numa mesma pessoa os papéis de pai e de mãe. Falei para minhas filhas que eu precisaria ficar no consultório até mais tarde e que elas ficariam com o pai, quando então, ele se auto-nomeou: “Não sou só pai. Eu sou pãe. Mistura de pai com mãe”. Num misto de queixa por minha ausência e orgulho por poder ocupar as duas posições, na brincadeira, um termo foi criado para nomear aquilo que está sendo vivido diariamente por muitas famílias. Afinal, em um período que a mulher é cada vez mais requisitada profissionalmente, nada mais justo do que partilhar tarefas domésticas e o cuidado com os filhos… Até aí, nenhuma novidade.

No entanto, como é que isso é visto e sentido pelas crianças? Até que ponto essa aparente fusão de papéis é saudável ou, ao contrário, prejudicial ao desenvolvimento emocional dos filhos? Para que possamos compreender o assunto, é necessário primeiro diferenciar alguns aspectos: É importante saber que uma coisa é ser a mãe, outra, muito diferente, é desempenhar o papel ou a função materna, como se diz em psicanálise. A função materna é desempenhada pela pessoa que cuida, amamenta (no peito ou mamadeira – tanto faz[1]), olha nos olhos da criança, ouve o que ela diz, está atenta aos seus sinais (orgânicos e emocionais) e uma série de pequenas atividades que são de grande importância para a criança (cantar, contar histórias, dar um beijinho no dodói, passar medicamento e assoprar…). Todas essas atitudes permitem à criança perceber-se como um ser amado, desejado e importante: “Alguém gosta de mim!”. Essencial para o desenvolvimento sadio. Esse papel foi (e ainda é) tradicionalmente desempenhado pela mãe, embora qualquer pessoa possa exercê-lo – desde que realmente dê a atenção necessária à criança!

Não há dúvidas de que, embora desgastante, a função materna é extremamente gratificante, tanto para homens quanto para mulheres. Acompanhar o desenvolvimento de uma criança é, para a maioria das pessoas, algo muito prazeroso, tanto pelo vínculo afetivo como pelas idéias de poder (o poder de criar, de comandar outra vida) e fantasias associadas (meu filho é… ou será…, quero que meu filho seja…), em geral projeções dos próprios desejos da mãe ou do pai.

Tradicionalmente, o pai é a figura que interdita algo, ou seja, que impede o acesso a alguma coisa. A função paterna, portanto, relaciona-se às regras e limites. É o pai quem determina a “lei” dentro de casa: “Isso não pode!”. É importante observar que não há necessidade de expressar essa lei por palavras: às vezes basta o olhar. O pai nem precisa estar presente, pois a figura do pai também é formada a partir do que a mãe fala sobre esse pai: “Você vai ver quando seu pai chegar!…” . Além disso, o pai também é aquele que mostra à criança que ela não é a única na vida da mãe, ou seja, permite o amadurecimento da criança às custas de se ver separado de sua mãe. Mesmo sendo doloroso, isso é extremamente saudável para a criança, que a partir daí irá se preparar para outras frustrações, separações. Assim pode aprender a defender-se, caminhar por si. Da mesma forma que a função materna, a função paterna pode ser exercida por outras pessoas, independente do sexo ou do grau de parentesco. Qualquer pessoa que dite regras ou que se oponha entre a mãe e a criança estará cumprindo esse papel. Quando a função paterna falha, a criança tende a ficar extremamente ligada à mãe (ou à pessoa que exerça a função materna), podendo apresentar, no futuro, dificuldade de estabelecer outros vínculos afetivos.

Na atualidade, boa parte dos casais mescla a função materna e paterna, ou seja, cada um exerce um pouco de cada função. A nossa questão é: até que ponto isso é saudável para a criança? Será que, essa confusão de papéis pode de alguma forma, gerar também uma confusão no desenvolvimento psíquico das crianças? Embora seja muito difícil prever a partir da teoria, a observação de crianças e adolescentes tem mostrado que o desenvolvimento psíquico é saudável desde que ambas as funções sejam exercidas de forma coerente, não importa por quem. Entende-se por “coerente” que exista um consenso entre pai e mãe. Se ambos ditam regras, que estejam de acordo a respeito delas. Por exemplo: não adianta a mãe dizer que a criança deve ir para a cama às nove da noite se o pai permite que assistam TV até as dez e meia. Neste caso, ambos estão ditando regras conflitantes. O problema não é que os dois exerçam a função paterna, mas o conflito gerado se não houver consenso. A tendência é que as crianças fiquem confusas ou não valorizem as regras.

Obviamente, o casal não deve abster-se de exercer a função paterna. Caso pai e mãe exerçam apenas a função materna – com muito amor, carinho, todos os cuidados e atenção, porém sem regras- estarão criando filhos despreparados para a realidade. É importante saber que a realidade não é um mundo só de prazer, amor carinho e satisfação, pois inclui perda, separação e frustração. Famílias muito austeras podem apresentar o comportamento oposto: regras em excesso e muito rigor – sem amor, afeto e aceitação-, levam a criança a acreditar que o mundo é um lugar ameaçador, cheio de perigos, onde a satisfação não pode ser encontrada.

Quanto à inversão de papéis ou mesmo mesclar os papéis de pai e mãe, existindo coerência haverá um ambiente emocional saudável para o desenvolvimento da criança. Complementando, ficam algumas dicas para os novos pais (ou “pães”) e mães:

-Esteja atento às necessidades de seu filho: ouça-o, olhe nos olhos dele, abaixe-se para falar com ele. Mostre que você está atento a ele.

– Valorize o que seu filho faz: ajude nas lições, conheça os amiguinhos dele, saiba quais são seus personagens preferidos, compareça às reuniões da escola, eventos esportivos e festivos.

Saiba dizer “não” sem se sentir culpado. É melhor que seu filho aprenda a conviver com pequenas frustrações desde pequeno. Cedo ou tarde ele terá de se deparar com os limites reais da vida e precisa estar preparado, para evitar grandes decepções.

– Converse muito com a (o) companheira (o) para definiras regras e os limites, a fim de evitar conflitos maiores. Mas saiba que ter opiniões divergentes, eventualmente, é parte do processo e uma oportunidade de amadurecimento também para vocês.

Não tenha medo de errar perante seu filho. Aceite suas próprias limitações e não tema perder o amor dele… Ainda que ele venha a se decepcionar com o seu “lado mau”, isso é necessário. Até porque, com o tempo, ele terá de descobrir que você, como todo mundo, não é perfeito. Aos poucos ele descobrirá isso e terá mais facilidade para lidar com seus próprios limites e imperfeições.

Feliz Dia dos (novos) Pais (ou Pães)!

[1] É claro que o aleitamento natural é mais saudável sob o ponto de vista nutricional e imunológico. Sob o ponto de vista psicoemocional, no entanto, a “nutrição” é o aconchego no colo, é o envolvimento no carinho e a troca de olhares. Uma mãe que amamenta no peito, mas pega o bebê como se fosse um objeto -como se fosse algo em vez de alguém- não o estará nutrindo emocionalmente. Ao contrário, mesmo com a mamadeira é possível transmitir ao bebê o carinho necessário para seu desenvolvimento.

Priscila de Faria Gaspar

é psicanalista, terapeuta de regressão e Mestre em Ciências (USP).

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