O mascate que vendia quilos de sua própria carne

lesterbangs.jpg?Santo beatnik, Lester. Crítico maldito, louco gênio do jornalismo gonzo, viveu velozmente de arte e de amor, encarnou o espírito do rock?n?roll, morreu jovem e pobre, etc, etc? ? enquanto isso, minha vitrola desenrola e escancara os riffs da potente guitarra e hino: ?My generation?, do The Who…

O trecho entre aspas é a apresentação do escritor Wu Ming 1 à edição italiana de Reações Psicóticas, do exponencial crítico musical Lester Bangs, e seria, como o próprio Ming relata, mais um bando de clichês sobre os quais sustentamos o rock e seus ídolos ? aqui mesmo, neste texto, haverá milhares deles. Seriam ainda os clichês elementares que rondam como espectros qualquer membro da juventude do rock atual ? esses párias ocidentais que vivem absortos no mais puro niilismo passivo, em meio a uma massa solitária, anônima e sem herói, todos caminhando juntos sabe-se lá para onde, sob a lâmpada queimada da pós-modernidade.

É justamente sobre esses clichês ? e que fazem bocejar qualquer velha senhora inglesa que escreva poemas, beba seu chá e regue suas plantinhas ?, aonde Ming sustenta Bangs. Santo beatnik, Lester. Mas, afinal, quem é mesmo esse tal Lester Bangs?

A resposta imediata poderia ser pelo filme ?Quase Famosos?, no qual o ator ganhador do Oscar deste ano, o talentoso Phillip Seymour Hoffman, o interpreta. Corra à locadora, veja o filme e os extras ? se você der sorte, encontra uma entrevista com esse tal Lester Bangs.

O buraco é bem mais abaixo de Hollywood, no entanto. Não fosse apenas um sábio genuíno, tão escarlate quanto o sangue e a pulsação da vida roqueira, Bangs teria uma carreira meteórica ? afinal, é tido como um dos melhores escritores norte-americanos da segunda metade do século XX ? caso não se limitasse apenas às resenhas de discos. Essa dedicação límpida e ferrenha, no entanto, nos proporcionou o maior filósofo do rock and roll do planeta. Sem qualquer exagero, Lester Bangs é O Cara, assim, maiúsculo, grandioso e que figura nos píncaros da tia velha de cinqüenta e poucos anos que faz as pedras rolarem ainda.

?Reações Psicóticas?, lançado agora no Brasil, não traz nada de novo no que se entende por rock, exceto o ineditismo do texto bangsiano e a excelente tradução dos jargões e gírias americanas para o bom português ? coisa rara, se levarmos em consideração as mutilações e os assassinatos estilísticos, vocabulares e literários tupiniquins nesse trabalho. Em uma análise superficial e senso-comum do sujeito que lê apenas as resenhas dos cadernos de cultura e das revistas, o livro é normal, não tem aquela ?grandiosidade highcult?, ou seja, aquele habitat prolífico para embustes intelectualóides.

Os textos, publicados originalmente nas revistas Creem, Village Voice, Stranded e no jornal Los Angeles Times, talvez sejam ?um pouco mais engenhosos? em relação ao que se lê hoje, diriam os desatentos. Ledo engano. Os textos de Lester Bangs são a matriz de tudo que se lê na mídia escrita de música até então. Porque todos querem ser Lester Bangs. Mas ninguém consegue.

Afinal, qual jornalista tem a coragem de desnudar ídolos como Elvis Presley (?Onde Você Estava Quando Elvis Morreu??) ou John Lennon (?Pensando o Impensável sobre John Lennon?), revirar e fragmentar suas auras míticas, suas poses de égide do rock e fazer despertar o leitor para distinguir que os rockstars são um mero instrumento da música, e não o show em si? Se há algum, que atire a primeira caneta ? tremei, Mick Jagger e derivados. ?Eles não seriam heróis se fossem infalíveis, na verdade não seriam heróis se não fossem uns cães sarnentos miseráveis, os párias da terra, e mais, a única razão para se construir um ídolo é jogá-lo por terra novamente?, sepultava o cruel e apaixonado Lester.

Esse armistício entre idolatria e iconoclastia é, talvez, o que há de mais visceral nos textos bangsianos, por assim dizer: ele constrói e demole, para depois edificar, com uma (absurda) coerência, o efeito catártico e sinestésico do rock: a confluência de som, emoções, imagem e poesia. ?Elvis era o único artista homem que já vi para quem eu respondia sexualmente; não era um tesão real, mais uma ereção do coração?, disse o heterossexual convicto Bangs. Porque ali não era a sexualidade que estava em jogo. Era algo muito mais além do mero entendimento carnal, era metafísico, era uma compreensão plena de cujas palavras ele, loucamente genial, tinha domínio. Santo Beatnik, Lester.  

Romanos, Lou Reed e a Era da Máquina

Quando dominavam o mundo, os romanos também tinham um séquito ? tal como os popstars. No caso romano, entretanto, não se tratava de um séquito de groupies (leia-se fãs), mas sim um séquito de escravos. Muitos deles, por sua vez, eram inteligentíssimos ? como os gregos. Os romanos deixavam que os escravos fossem instruídos em todo o tipo de matérias práticas, como a matemática e a engenharia, para que pudessem construir coisas; e como a música, para que pudessem ser artistas. Entretanto, apenas os cidadãos livres de Roma tinham acesso ao que se denominava, na época, de artes liberais, como retórica, literatura, história, teologia e filosofia. Eram as artes de persuasão, aquelas que libertariam os escravos dos grilhões da escravidão mental, articulariam os argumentos e incitariam uma possível revolução escravocrata.

Essa dose homeopática de história é para dizer o seguinte: a música por si só, não liberta. Ela escraviza ? ou é um desses grilhões. Por outro lado, pensar sobre música e seus desdobramentos é essencial para que a tornemos arte. Lester Bangs, ao vislumbrar o advento da cultura do popstar e suas groupies, tentava nos levar a esse entendimento.

?Ego? Essa pode não ser a palavra mais grandiosa do século XX, mas certamente é o veneno que embala a alma de todo popstar?, sentenciava Lester, na abertura do texto-entrevista ?Vamos Agora Louvar os Famosos Duendes da Morte (ou Como Enfiei o Pé Na Jaca com Lou Reed e Fiquei Acordado)?. A entrevista com Reed, realizada em 1975, entrou para os anais da história do rock and roll pela briga homérica, irreverência e troca de farpas sublimes. No melhor estilo gonzo (gênero jornalístico, cujo mentor foi o não menos brilhante Hunter S. Thompson, que mistura experiências psicoativas com a narração jornalístico-literária), Lester descreve o ambiente e a situação com um relato ímpar sobre um popstar narcisista e afetado, desbocado e repleto de manias bizarras. Impagável.

Outra jóia da coroa bangsiana é a entrevista com o grupo eletrônico alemão Krafwerk, de 1975. Traçam-se, na cabeça do leitor, duas paralelas, aquelas retas que jamais se encontram no infinito: a imbecilidade descabelada norte-americana (que, no caso de Lester, é absolutamente genial) e a quadradice intelectual de cabelos à escovinha alemã (igualmente genial, quando se pensa em Kraftwerk, representantes máximos da Era da Máquina).

Lester se foi, na acepção máxima do ?too fast to live, too young to die?. E as pedras ainda rolam. O que diria ele, nosso santo beatnik, sobre os megashows do U2 e do Rolling Stones no Brasil? O que diria ele dos ignorantes inebriados, macaqueando e se descabelando diante das câmeras de TV, sem pronunciar uma frase completa e inteligível? E das Very Important People que circulava à beira dos palcos, deixando aquela massa solitária e anônima e sem herói lá atrás, esmagadas porque não encarnam o mito ideal da celebridade? Se você leu o texto com atenção, vai perceber que a resposta não é tão difícil. Santo beatnik, Lester. Niilista ativo, crítico maldito, louco gênio. Que viva, ainda que pelos livros, o velho e genuíno espírito do rock and roll. 

Serviço
Reações Psicóticas, Lester Bangs.
Conrad Editora. Preço: R$ 19,50.

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