O homem mais importante do mundo

Senhor, onde é que vai? B’atarde, … eu tô indo no consultório lá, do dentista, no oito, acho. Seu João tira do bolso o papel amassado, abre na frente do segurança do prédio: É no oito, aqui, oh, Dr. Rafael. Segurança: Sei. É no oitavo. Oito é o número. O segurança olha rindo para a moça que está junto, no balcão da recepção. Quer se mostrar, mostrar a autoridade. A moça também trabalha no prédio. Hora do almoço dela. Ela sempre vem no almoço. Paqueram. Seu João parado, o papel amassado na mão. Como que esperando autorização. Seu João sempre teve que esperar autorização. Sempre teve que pedir para entrar. Segurança pergunta: Consulta? Seu João: Não, não senhor. Espere que eu vou ligar lá, então. Tem que ligar quando não é consulta: Tem aqui um homem que quer falar…Falar com quem, lá em cima? Com Dr. Rafael. Dr. Rafael. Não, Ele disse que não é consulta. Tá. Olhe, Dr. Rafael não chegou ainda. Lá não tem nada marcado, ela disse. Tem que esperar ele chegar, prá autorização. Se quiser pode esperar alí. O segurança aponta para uma área na recepção. Não era para Seu João sentar. Na recepção, algumas poltronas de couro. Pretas, pé de metal brilhante prateado. Um quadro na parede. Um desenho que João não entende. João chega perto das cadeiras, mas não senta. Fica ao lado. O papel com o endereço na mão. Como que uma segurança, uma garantia, se alguém perguntar por que ele está lá, naquele mundo, naquele lugar.

Outras pessoas chegam na recepção. Algumas conversam com o segurança. O segurança e a moça falam de algumas pessoas que chegam. Cumprimentam antes, sorriem, falam depois que a porta do elevador fecha. Às vezes falam mal, sorriem sempre. Seguem um código, o segurança e a moça. Um jogo. Seu João repara. Outras pessoas chegam. Pessoas bem vestidas. Seu João com sua melhor roupa. Mesmo assim, quem chega é diferente de Seu João. Seu João usa um terno. Não usa gravata. Sapato preto e terno marrom. O cinto preto desbotado nas marcas da fivela. Algumas pessoas passam por Seu João e nem reparam. Outras olham. Estranham. Perguntam com os olhos quem é. Olham para o segurança. O segurança está lá. Seguem tranquilas. Um casal chega, passam reto por Seu João. Como se Seu João fosse uma planta. Fosse a palmeira grande que decora a recepção. A palmeira enfeita a recepção. Seu João enfeia. De alguma forma, atrapalha. Atrapalha sem fazer nada, atrapalha só sendo.

João repara no prédio. Lembra do tempo em que trabalhava de pedreiro. Chegou em Curitiba buscando trabalho. Não sabia, nem sabe, ler. Lê o seu nome, um ou outro nome de rua, uma ou outra placa. O nome do prédio não consegue ler: Batel New Square Business Center. Nem tenta. Fica pensando no tempo em que chegou em Curitiba. Chegou com os dois filhos pequenos. Treze e oito. Os dois filhos e a esposa. O maior nunca quis estudar. Não tinha jeito. O menor sempre gostou da escola, estudioso. O mais velho começou a trabalhar cedo, até hoje trabalha na mesma empresa. Trabalhador, esforçado. Foi transferido para Londrina, tocar a firma lá. Agora vai tentar tirar um diploma. Só agora, depois de velho. Vai ver que de remorso, de tanto a mãe ralhar. A mãe morreu ano passado. Câncer de mama. No posto de saúde, demoraram demais para marcar o exame. O médico disse, se tivesse tratado antes, salvava. Não tinha posto perto de onde moravam. Tatuquara. A rua onde moravam nem nome tinha. Agora morava sozinho. Não tinha telefone. Estava longe dos filhos. Tinha muito orgulho dos filhos. Dos dois, cada um do seu jeito. Os dois tinham se encaminhado. Foi difícil. Difícil comprar roupa, material, caderno. Um tempo, não tiveram como estudar. Precisavam ajudar em casa. O mais novo voltou para a escola depois. O maior continuou só trabalhando.

O segurança e a moça do balcão continuam conversando. O rapaz faz a menina rir. O segurança se faz de sério para cada pessoa que chega. Seu João de pé, ao lado da palmeira que decora a sala. Pequeno, bem moreno. O cabelo pichaim branquinho. Parece lã. Uma das pernas do óculos grudada com durepox. Uma senhora simpática entra, cumprimenta com a cabeça Seu João. A primeira que cumprimenta, uns cem já tinham entrado. Chega na recepção: Boa tarde, Dentista, no oitavo? O segurança não liga para o consultório, não pergunta o por quê dela ter vindo. Confirma com a cabeça. Entrega um crachá. Visitante. A senhora simpática entra no elevador e desaparece. A moça no balcão fala: Vou indo, acabou meu horário. Já, não são nem uma hora ainda. Depois a gente se fala, eu passo aqui antes de sair. A moça também desaparece. Ficam na recepção Seu João e o segurança. Seu João olhando para baixo, o pé. O número de pessoas chegando diminui. A presença de Seu João incomoda o segurança. Nunca disseram, disseram dito, que pessoas como Seu João não podiam entrar no prédio. O segurança sabia que não podiam. O segurança tem que ser diferente de Seu João. Seu João lembra o pai do segurança e aquilo incomoda também. No trabalho, ele, o segurança, tem que ser parecido com as pessoas que vem ao prédio. Parecido ele aprendeu a ser. Igual não seria nunca. Fingia. Para manter o disfarce, mantinha Seu João à distância.

Seu João ainda de pé, esperando. Dor nas costas. Acostumado a esperar. Nem pensa em sentar. Começa a se distrair pensando. Pensando no que mais gosta, pensando nos filhos. Pensa às vezes em um, às vezes em outro. Relembra. Duro danado que deu para criar direito os dois. Pensa no pequeno. Que alegria, chamaram na escola, que feliz aquele dia. Encerramento da quarta série. Avisaram. Ele ia ganhar medalha, o melhor aluno. Era para os pais irem entregar lá na frente. Na festa de encerramento, no Auditório do Colégio Estadual. Seu João lembra do sorriso da esposa quando recebeu a notícia. Do tamanho que ela ficou, cheia, orgulhosa, linda. Depois, no encerramento, anunciaram o nome do melhor aluno. O nome do filho, o sobrenome do pai. Todo mundo bateu palma. Chamaram o filho para receber a medalha. Depois chamaram ele, ele e Aurora para entregar. Ele usava o mesmo terno marrom que usava agora. Estava de gravata aquele dia. Tinha comprado no crediário só para isso. Dona Aurora com um vestido feito na costureira. Uma bolsa emprestada da vizinha. Levantaram tremendo. Aurora apertava forte a mão de João. Chorava e ria. João queria parecer bem sério. Andava reto, olhando para frente. Chegaram no palco, o piá deles lá. O Diretor da Escola entrega a medalha. Cumprimenta João. João aperta leve a mão do Diretor. Mão dura, escalavrada de pedreiro. O piá dele lá, pequeno e importante, camisa branca, cabeça erguida. Seu João lembra o olhar do filho. Alegre. A alegria do filho agradecia Seu João. Fazia dele o homem mais importante do mundo. O pai do melhor piá.

O segurança se cansa da revista que folheia. Dirige o olhar para Seu João. Seu João lá, incomoda. Pergunta: Senhor marcô hora? Acho que Dr. Rafael não vem hoje de tarde. Seu João olha, não responde. Nos últimos tempos, tem respondido devagar. Segurança: O Senhor vai ter que esperar lá fora, aqui não dá. Tem que sair. Seu João vai caminhando para a saída. A porta automática do prédio abre. Um moço alto, moreno, entra no prédio. O segurança cumprimenta: Boa tarde Dr. Rafael. O moço, bem vestido, roupa branca limpa, nova. Sorriso prefeito, saúde. Chave do carro na mão. Seu João sorri quando vê o moço. Vê o moço e enxerga o seu piazinho naquele dia, lá, no Estadual. Na frente de todo mundo. Os mesmos olhos. Sente o mesmo orgulho. Ergue a cabeça. O Segurança fala: Dr. Rafael, esse senhor quer…Dr. Rafael não escuta o segurança. Entra e abraça Seu João. A cabeça branca da mesma cor da camisa do dentista: Pai! Até que enfim! Qu’bom, veio me visitar! Hoje, não deixo você ir embora. Claudinei, esse é meu pai, Seu João da Silva. Devo tudo que tenho a ele. Com ele, aprendi a ser gente. O segurança Claudinei dá boa tarde, como Seu João tivesse acabado de chegar. Rafael passa o braço pelos ombros do pai. Entram os dois no elevador. Pela segunda vez na vida, Seu João é o homem mais importante do mundo.

Aristides Athayde

é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce.

aristides@aristidesathayde.com.br

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