Nossa memória, tantas vezes esquecida…

“Quem guarda o que não presta, tem o que precisa.”

Muitas vezes lembro do velho ditado de minha bisavó, Margarida Maurer Moletta. Alta, olhos expressivos, cabelos muito brancos presos em coque e uma arara vermelha e azul, sua velha companheira, sempre no ombro. A sua bela “Vila Entre Rios”, onde morava, tinha magníficas pinturas de paisagens nas pareces e delicados entalhes em madeira vinda da serraria do bisavô.

Sentada na bela escadaria minha mãe bordara todo seu enxoval. A “Vila Entre Rios” (situada defronte à Sociedade Água Verde) não seria demolida, mas sim transformada em salão de festas do luxuoso edifício. Doce ilusão: da noite para o dia foi posta abaixo… e com ela, mais uma parte de nossa memória.

O mesmo ocorre freqüentemente com tantos bens tidos como “inúteis”: livros, revistas, discos, jornais, fotos…

A coleção “Retrato do Brasil” de Mino Carta, relata que os arquivos do jornal Última Hora, fundado por Samuel Wainer em 1951 não mais existem.Com a venda do diário carioca, em 1971 os arquivos foram literalmente colocados na rua, levados pela Comlurb – Companhia de Limpeza Urbana e…incinerados. Com o Correio da Manhã, também do Rio, quase acontece a mesma coisa, mas um feliz acaso acabou salvando os arquivos: os móveis de aço da empresa, que foram a leilão, tinham nas gavetas todo o material fotográfico do jornal. Depois de tentar vendê-lo, sem sucesso, a empresas editoriais, seu novo dono, um empresário, terminou por doá-lo ao Arquivo Nacional.

Pesquisar a história brasileira também não é fácil. Segundo o decreto de número 4.122, do ano de 1968, do governo Costa e Silva, o público só teria acesso a documentos anteriores ao ano de 1900. Por outro lado, em Londres, a Public Record Office, de lei do ano de 1958 libera para consulta todos os documentos anteriores a 30 anos, tanto da política externa quanto interna. Documentos sobre a escravidão brasileira, por exemplo, estão disponíveis a qualquer pesquisador. Graças a essa abertura existente no exterior, filmes como “Jango E Anos JK”, de Sílvio Tendler e livros como “Olga” (Benário), de Fernando Morais, puderam ser completados. Foram consultados o Departamento de Estado e Arquivo Nacional dos Estados Unidos e Alemanha Oriental. Na Fundação Feltrinelli, em Milão, Itália, há um arquivo histórico do Movimento Operário Brasileiro.

Enquanto isso, muitas vezes a burocracia consegue criar problemas até em trâmites simples, como os de uma doação. Quando o poeta e tradutor Jamil Amansur Haddad resolveu doar certa de 6 mil livros à biblioteca de sua cidade com a única exigência de que esses fossem retirados do local, encontrou todo tipo de empecilho como ofícios, etc. E acabou doando todo o acervo à municipalidade de Santo André. O mesmo aconteceu com o professor José Cândido, ao tentar doar sua biblioteca à entidade em que trabalhava, a USP: era alegada a falta de espaço, e ele acabou doando à Unicamp.

Enfim, se não contar com a ajuda ou interesse governamental, muitas vezes parte da memória brasileira ainda se mantém graças a abnegados estudiosos. O Museu Cearense da Comunicação, em Fortaleza, criado pelo jornalista Miguel Ângelo de Azevedo, é mantido em sua casa com recursos próprios. São 30 mil discos de música popular. Mas nossa memória musical está sempre correndo riscos. Em 1984 uma reportagem sonoplasta de rádio Salatiel Coelho estava vendendo sua coleção de 27 mil discos de música popular de 78 rotações. O comprador seria uma empresa que derreteria tudo para aproveitar a cera de carnaúba na confecção de solas de sapatos. Felizmente, na gestão de Gianfracesco Guarnieri o acervo foi comprado e depositado no Centro Cultural de São Paulo.

Em 1966 foi publicada em O Globo uma série de reportagens sobre “o processo de desintegração de instituições culturais responsáveis pela preservação de nosso patrimônio artístico”. No mesmo ano o musicólogo alemão Francis Curt Lange publicou em Coimbra, Portugal, um texto sobre música colonial mineira e revelou ter descoberto, no início dos anos 40, que centenas de partituras de música barroca tinham se perdido porque os padres costumavam vendê-las aos fogueteiros da região para que fabricassem foguetes com “seu papel resistente”.

Em 1984 um contador carioca recebeu de um órgão de Pesquisa e Ciências Sociais milhares de livros e periódicos como parte de pagamento de uma dívida trabalhista. No meio do acervo havia o estatuto da primeira liga camponesa formada por Francisco Julião e uma coleção completa sobre os dois governos de Getúlio Vargas. Precisando de dinheiro, o contador procurou várias faculdades e órgãos ligados à educação para vender o material. Por mais de 10 meses perambulou, tendo que pagar aluguel para que o acervo permanecesse em uma faculdade. Por fim, já sem recursos, vendeu tudo para um depósito de papel, que o revendeu a uma fábrica de papel. E tudo se transformou em papel higiênico.

Zélia Maria Nascimento Sell

é do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.

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