Nicole Kidman e Dogville monopolizam as atenções

Cannes – Um vendaval passou pelo 56.º Festival de Cannes e atende pelo nome de Dogville. O novo filme de Lars von Trier, com Nicole Kidman no papel principal, já era mesmo o mais aguardado da mostra. Nicole foi a garota da capa de todas as revistas importantes de cinema, sem falar nas de fofocas e celebridades. De modo que o dia foi praticamente monopolizado por Dogville e seu elenco.

Depois da projeção houve empurra-empurra e gritaria para ver quem conseguia entrar na sala da entrevista coletiva do Palais. Lá dentro, Nicole, linda de morrer, de óculos, pretinho básico e ar descansado de quem parecia ter dormido dez horas seguidas, respondia a perguntas ao lado de Von Trier.

Claro, essas entrevistas em geral rendem pouco. Há um estresse inerente a todo festival tamanho-família e esse é o maior deles. Quando o filme é badaladíssimo como Dogville, o quadro piora e monta-se uma operação de guerra por parte da mídia e dos organizadores. Dadas as circunstâncias, até que Nicole e Von Trier se saíram bem.

Nada falaram de muito profundo, é claro. Nicole comentou as dificuldades mas também a criatividade envolvida num trabalho em que se afasta do estereótipo de símbolo sexual. E Von Trier deu algumas espetadas nos Estados Unidos, quando um repórter daquele país perguntou se a seqüência em que a cidadezinha que dá título ao filme é destruída poderia ser entendida como alusão ao intervencionismo americano.

O diretor não afirmou nem que sim nem que não. Mas disse com todas as letras que, em sua opinião, a América havia tomado um caminho que não lhe parecia o melhor. “Nunca fui lá e acho que essa não é a melhor hora para ir”, disse. E, pouco diplomático, completou: “Faço meu trabalho; se não gostam dele, paciência”.

Intimidade

Mas, de fato, há uma relação toda especial de Lars von Trier com os Estados Unidos. Dançando no Escuro, que há três anos ganhou a Palma de Ouro, era “ambientado” na América e foi considerado uma crítica ao sistema penal daquele país. Agora, a imaginária Dogville fica nas Montanhas Rochosas, passa-se durante a Depressão e seus intérpretes são quase todos americanos. James Caan, Ben Gazzara, Lauren Bacall, entre outros.

A australiana Nicole interpreta Grace, fugitiva que misteriosamente chega a Dogville, onde a princípio é aceita, depois explorada e finalmente torna-se vítima. Ela tem uma carta na manga – que não quer usar até o fim. Ou até quando a história muda de direção e transforma-se num estudo sobre o prazer da vingança. O desenvolvimento do tema é lento, sutil como as mudanças de direção que são introduzidas aos poucos até que pareçam naturais e inevitáveis. São três horas de projeção, que passam sem nenhum sacrifício.

Visão de Von Trier disseca a América

Dogville é brilhante e pode ser considerado, desde já, forte candidato à Palma de Ouro. Até hoje pensava-se que toda a agitação em torno dele poderia ser apenas badalação para efeito de mídia. Agora se sabe que todo esse chantilly tem muito sorvete por baixo.

Von Trier usa um espaço fechado para desenvolver sua história. Teatro? Menos que isso. Para o leitor ter idéia, o sentido de distanciamento proposto é tanto, que a cidade imaginária é demarcada por letreiros e faixas no chão: avenida tal, casa de fulano e de beltrano, etc. Um certo cachorro, que late o tempo todo, é apenas um desenho a cal, com a legenda: “dog”. Tudo é posto a serviço da narrativa e o diretor não se furta à voz em off (de John Hurt), que vai conduzindo a história. Dogville é, a um tempo, algo menos que o cinema que conhecemos, e algo mais, que vai além dele. Abre horizontes. Von Trier tem dito que está em busca do cinema total, algo que incorpore também o teatro, a literatura, a ópera. Aliás, não por acaso, seu próximo projeto é a montagem da integral do Anel, de Wagner, em Bayreuth.

Implacável

A substância de fundo em todo esse dispositivo formal é uma poderosa máquina analítica que disseca a mesquinhez de uma vida provinciana, que, no caso, seria a dos Estados Unidos durante a crise. Poderia se passar em outro lugar e tempo, mas não ficaria tão bem no figurino. Mostra como as pessoas são tanto maravilhosas como sórdidas. Tem se falado muito em Brecht para localizar o distanciamento crítico com o qual Von Trier coloca história e personagens em perspectiva.

Ele mesmo cita Ópera dos Três Vinténs e a Canção de Jenny como fontes de inspiração. Mas há também uma pitada de Buñuel na maneira implacável como ele vai à raiz dos impulsos cruéis desses personagens e leva em conta toda a sua contradição. O filme é inequivocamente político e seu final, com a cidade arrasada “para o bem geral”, não poderia estar mais em sintonia com a política americana para com os “países delinqüentes”. A alusão não escapou ao repórter americano que fez a pergunta a Von Trier.

Dogville recebeu o melhor e mais prolongado aplauso da platéia do festival, até hoje. Agora é ver se aparece filme melhor, capaz de destroná-lo. Júris são imprevisíveis e o filme pode não levar nada no fim. Mas que tem pinta de campeão, isso tem.

Depois do abalo sísmico causado por Dogville era normal que o restante do calendário de hoje ficasse prejudicado. Carandiru teve sua coletiva logo em seguida à de Von Trier, Kidman e cia. (veja matéria nesta página). Mesmo assim, havia uma boa meia sala disposta a discutir o drama carcerário brasileiro. Agora é esperar pelas primeiras críticas ao filme de Hector Babenco.

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