Mestres relatam o resgate do fandango no litoral do Paraná

A XXI Oficina de Música de Curitiba e XI Oficina de Musica Popular Brasileira, que ocorreu no Colégio Estadual do Paraná, em Curitiba, promovida pela Prefeitura Municipal de Curitiba, de 18 a 26 de janeiro de 2003, favoreceu o encontro de jovens paranaenses e paulistas e o reencontro dos dois mestres do fandango paranaense que estimulam as novas gerações para a continuidade, como confirmou o participante curitibano Alex Calazans: “Aprendemos por imitação, seguimos o mestre Romão, olhamos seu Milton tocar viola, seu Pedro tocar rabeca e seu Valdomiro no adufo.”

Na Ilha dos Valadares, em Paranaguá, a dança dirigida pelo mestre Romão Costa atrai inclusive a atenção de crianças entre 4.a e 7.a série do ensino fundamental e, em Curitiba, jovens como os componentes do grupo Meu Paraná, orientados pelo mestre Inami, ensaiam periodicamente as marcas, batidas bailadas ou valseadas, com o objetivo de salvar as raízes culturais, como afirma a participante curitibana Débora C. Basso: “É o resgate das raízes do Paraná, porque o paranaense dá mais valor ao que vem de fora”.

O objetivo do presente trabalho é construir, por meio de relatos orais e/ou escritos dos mestres do fandango, Inami Custódio Pinto e Romão Costa, a história original do resgate do fandango no litoral do Paraná.

Os mestres do fandango do litoral paranaense

Três são os mestres de fandango que no passado prometeram não deixar o folclore morrer: Inami Custódio Pinto, Manuel do Carmo Silva ou Manequinho da Viola e Romão Costa ou Romãozinho.

Inami Custódio Pinto, filho de Inamá e Emília Pinto, nasceu aos 19 de outubro de 1930, em Curitiba-PR. Foi professor, autor de mais de 400 composições musicais, apresentador de televisão, roteirista e pesquisador. Passou cinco gerações retransmitindo o folclore em colégios de ensino fundamental e médio, estadual e municipal; no ensino superior, na PUCPR, na UFPR e na Fundação de Artes do Paraná. Mantém a Companhia de Danças Mestre Inami, com o grupo Meu Paraná, de Curitiba-PR.

Manuel do Carmo Silva, filho de João Modesto e Laudelina M. da Silva, nasceu no Rio da Vila, em Paranaguá-PR, aos 16 de julho de 1913, e faleceu aos 29 de março de 1979. Segundo o professor Inami, “foi multiplicador das danças e iniciou várias gerações no fabrico e aprendizado de violas e rabecas.”

Romão Costa, filho de Norberto Costa e Elisia Matias, nasceu na Ilha dos Valadares, em Paranaguá-PR, aos 4 de fevereiro de 1929. Exerceu profissão de pescador e estivador, atualmente é aposentado. “Seu avô e seu pai eram mestres de fandango e foram seus professores desde os quatorze anos. O Romão faz projetos, é carpinteiro é pedreiro, é tudo, graças a ele o fandango permanece”, disse Inami.”

A dança. O fandango é uma dança muito antiga. No século XVI Cervantes já se referia a ela em Novelas exemplares, enfatizando que o fandango é um salto de almas, espoucar de risos, desassossego dos corpos e azougue dos tecidos. Em Portugal, no século XVIII, invadiu Lisboa dos Paços, dos reis à mouraria. Os portugueses o levaram para os Açores junto com outras danças. De lá, acompanhou os imigrantes que foram para o Rio Grande do Sul e Santa Catarina em 1747. O Fandango paranaense reúne várias danças, provavelmente adaptações de danças ibéricas. Cada marca de fandango tem seus passos característicos e versos próprios, ligados a um estribilho variável. Segundo Pinto, no livro Curso de Folclore (1983, p. 56): “Para cada marca há um sapateado. Existem marcas bailadas ou valseadas, dançadas como qualquer dança de salão, apenas seguindo o ritmo, e as de rodas passadas, dançadas entre duas ou três marcas batidas para o descanso dos folgadores.” No livro que Inami está preparando, há um capítulo especial sobre o fandango do litoral paranaense, inclusive descrevendo os movimentos das marcas, as letras das músicas acompanhadas de suas partituras. Algumas delas são: Anu, Xarazinho, Xará-grande, Queromana, Tonta, Chamarrita, Feliz e Vilão de Lenço.

Instrumentos Musicais

Os instrumentos da orquestra típica do fandango são a viola, a rabeca e o adufo ou adufe. Inami explica que “o adufo é uma espécie de pandeiro, coberto com couro de cotia que não esquenta. Outro couro descarnaria as pontas dos dedos do tocador ao arrastá-los no couro. A viola e a rabeca são fabricadas geralmente pelos músicos com canivete utilizando a madeira caxeta, não afetada pelo cupim. A rabeca, com a voluta toda trabalhada, é uma verdadeira obra de arte. No Brasil há cinco classificações de viola de arame de aço, mas foi excluída a viola do fandango que só é fabricada no Paraná. A maneira de tocar é tipicamente paranaense: são cinco duplas e a meia-corda que é denominada turina.”

A história do fandango no litoral do Paraná

O mestre Romão Costa, responsável, junto com o mestre Inami Custódio Pinto, pelo resgate do Fandango no litoral do Paraná, explica os detalhes do seu surgimento: “Chegou um casal de açorianos na ilha da Cotinga, em Paranaguá, permanecendo ali por um certo período. Como tinham saudade da terra deles, começaram a tocar e a dançar sendo acompanhados por curiosos da região. Num certo momento, viram um passarinho e perguntaram aos índios: que pássaro é esse? Anu, responderam. Anu? Na nossa terra também tem, mas é diferente. Os índios então fizeram a volta e começaram a dançar, originando a marca do Anu. Dentre os presentes estavam índios, africanos, espanhóis e portugueses. Todos foram dançando o fandango de seu modo, influenciando a origem da história do Fandango no litoral do Paraná. Conforme Pinto (1983), os primeiros casais de colonos açorianos chegaram ao litoral por volta de 1750, e o fandango passou a ser “batido” principalmente durante o entrudo (precursor do Carnaval).

O mestre Inami explica que antes da Segunda Guerra Mundial o Carnaval de Paranaguá era um dos melhores do Brasil, rivalizando com Santos, Rio de Janeiro e Recife. Até 1939, durante o entrudo era realizada grande festa e dançavam-se as marcas tradicionais (cerca de vinte). As pessoas “batiam” fandango e comiam barreado, outras comidas e doces típicos da região nos quatro dias de carnaval. Com a guerra, foi proibida a iluminação noturna e eram feitos ensaios de blecaute caso Paranaguá fosse bombardeada. Não havia casa própria para a dança, e a carência não permitia comprar o necessário para o fandango, que não é sinônimo somente de dança, mas de grande festa com presença abundante de comida, bebida, doces e foguetório.”

Conforme o mestre Romão, “no tempo da guerra, enquanto os homens iam lutar, surgiam fanáticos religiosos que mostravam a bíblia e diziam para as pessoas que haviam ficado no sítio: vocês trabalham tanto, mas não vão se salvar se não se converterem a crentes. Em muitos casos, os sitiantes mudavam de religião e paravam de praticar o fandango, tido como pecaminoso. O fandango foi se acabando assim”.

Em 1939, o pai de Inami foi transferido para Florianópolis onde morou até o final de 1951. Quando chegou em Curitiba, Inami tratou de visitar, em Paranaguá, seu primeiro professor de música, o escritor e folclorista Manoel Viana que, com tristeza, lhe informou que o Fandango havia desaparecido. De 1952 a 1954, Inami fez um curso, foi nomeado e prestou serviço na 13.a Delegacia Regional de Londrina até 1962, quando regressou a Curitiba. Percorreu várias ilhas, Guaraqueçaba, Antonina, Morretes, Porto de Cima, e constatou a ausência dessa dança. Juntamente com o escritor e folclorista parnanguara Mário Macaggi, anotou os nomes de dezenas de fandangueiros e estudou a possibilidade de continuar a manifestação.

Procurou também o mestre Romão, em 1962, mas como ele trabalhava dia e noite, a reativação do Fandango só foi possível em 1966. Assim, o Fandango ficou adormecido por 27 anos (1939-1966). Relata Inami: “Eu queria ressuscitar o Fandango quando, por determinação do Prefeito Municipal de Paranaguá, o professor Nelson de Freitas Barbosa, foram colocados à nossa disposição o secretário de cultura, o Sr. Souza Lobo, e o funcionário municipal, o Manequinho da Viola, pois, com o intuito de reviver o fandango, já haviam sido distribuídos cartazes em todo o Brasil convidando para O carnaval tradicional de outrora. O Manoelito e eu esclarecemos ao prefeito que O Carnaval tradicional precisava incluir o fandango como antigamente quando os litoranos “batiam” e comiam barreado durante o Carnaval. O Romão Costa, o maior mestre da dança, selecionou 12 pares oriundos de várias localidades do litoral, incorporando o grupo do Manequinho, o maior mestre de viola de todos os tempos. Este grupo, uma verdadeira seleção, foi chamado Grupo de Fandango da Ilha dos Valadares. Fez sucesso naquele carnaval, viajou pelo Paraná e Paraguai, sendo objeto de documentários cinematográficos, imprensa, programas de rádio, televisão, discos, em âmbito nacional e internacional.”

Segundo Romão, “se o professor Inami não tivesse pesquisado, o fandango não estaria vivo, porque o pessoal novo não se interessava. Havia quem tocasse viola, não havia quem dançasse. Havia quem dançasse não havia quem tocasse viola, havia quem batesse adufo não havia quem cantasse. Ele esteve em minha casa. Aí nós ensaiamos de dez a doze dias. Quando estava pronto, apresentamos em Curitiba, primeiramente no Colégio Estadual do Paraná, onde Inami era professor e Ernani Straube era diretor. A segunda apresentação foi no Palácio do Governo quando o Dr. Paulo Cruz Pimentel estava lá. Ai foi querendo morrer. O Torcato Neto, que era representante dos pescadores em Paranaguá, me chamou para renovar o fandango. Houve uma reunião com os interessados na Câmara dos Vereadores de Paranaguá. Participaram professoras do Paraná, de São Paulo, de Porto Alegre e até dos Estados Unidos. (…) Quando chegou minha vez de falar do fandango, eu disse: o historiador que esteve aqui foi o professor Inami e contei a origem do fandango. Elas disseram: o senhor é nosso professor porque conhece o Fandango na história, na música e na arte. Aí fizemos o primeiro seminário de fandango em Paranaguá, em 1993.”

Atualmente, o mestre Romão reclama que “existem pessoas ensinando o fandango erroneamente.” Mestre Inami complementa que “o fandango não pode ser confundido com danças gaúchas. O que ocorre no Rio Grande do Sul é tradição. Folclore é o que nasce com o homem do campo, com o analfabeto. O puro é que é bonito. É ato folclórico a aprendizagem por imitação. Se for ensinado por gráficos ou se houver voz de comando, perde-se a característica de folclore.”

Os mestres Romão Costa e Inami Custódio Pinto passaram os últimos 18 anos distantes (1985-2003), ou por motivo de trabalho (Romão) ou por motivo de doença crônica que impossibilitava viagens e qualquer tipo de esforço (Inami). Antes disso, Inami acompanhava seus alunos da Faculdade de Educação Musical do Paraná, hoje Fundação Faculdade de Artes do Paraná, à Ilha dos Valadares e a outras regiões litorâneas para constatarem in loco e praticarem com os portadores de folclore o que havia ensinado nos quatro anos de curso. “Tenho saudades de quando era recebido por Romão e sua esposa Siroba, que preparavam, como só eles sabem, o barreado, o caldo de peixe com “pirão do mesmo”, outros pratos e doceria típicos, e de quando meus alunos “batiam” fandango, elas com os folgadores, eles com as folgadeiras.”

Aos 23 de janeiro de 2003, no final do reencontro em sua residência, disse Inami. “Eu me sinto emocionado como no primeiro dia em que conheci o mestre Romão. A gente só sabe o que o cara é depois que morre, mas tive a honra de outrora e agora apertar a mão de um mestre vivo.” Mestre Romão respondeu: “Um ajudou o outro. O verso do Manequinho diz: Inami nosso professor e fandangueiro disse que o nosso fandango vai correr o Brasil inteiro, e não deu outra. Gravamos LPs que correram não só o Brasil mas o mundo.” Desse modo fica relatada a história original do resgate do fandango no litoral do Paraná.

Zélia Maria Bonamigo

é jornalista, especialista em Mídia e Despertar da Consciência Crítica, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.E-mail:
zeliabonamigo@terra.com.br

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