Lourenço Mutarelli, em nome do pai

Como todo quadrinheiro, cheio de idéias na cabeça e nenhum mísero metal no bolso, Lourenço Mutarelli começou nos fanzines. Editou o primeiro no quintal da editora Pro-C, em São Paulo. Os amigos e a turma louca por gibi aplaudiram o talento que despontava e desejaram-lhe sorte. No íntimo, porém, todos amargavam a certeza de que ele, como tantos outros sonhadores do texto e do pincel, teria uma curta vivência nesta terra de tão poucas oportunidades. Pois enganaram-se redondamente, felizmente.

Conta Gualberto Costa, companheiro e grande incentivador de Lourenço, que ele aproveitou cada chance que lhe surgiu pela frente, todas as brechas, por menores que fossem, abertas para os artistas nacionais. “O garoto tinha fibra de aço.” Foi em frente, espantou as dificuldades e galgou, passo a passo, o caminho do sucesso. Impelido por uma enorme criatividade, incomum no mercado nacional de quadrinhos, empreendeu uma caminhada rumo ao novo e acabou por revolucionar a linguagem das HQs.

É isso aí. Lourenço Mutarelli é, sobretudo, um inovador. Dono de uma narrativa cinematográfica, que cativa e aprisiona o leitor, e de um traço denso e forte, agressivo, quase caricatural, ele foi construindo os seus projetos e produzindo os seus álbuns, nos quais – ainda segundo o amigo Gualberto – desnuda-se publicamente, escancara a alma e as cabeças (dele e dos leitores) e abriga as suas angústias, dores, desencantos e inseguranças (pessoais e profissionais).

As páginas de Mutarelli são impregnadas de puro existencialismo e de um realismo digno de Frank Kafka, pegando fundo nas emoções como um Edvard Munch. Talvez haja um excesso de admiração nesta afirmação, mas é difícil ficar insensível diante do trabalho de Lourenço. Sobretudo depois que ele passou a ser editado pela Devir Livraria e a receber o tratamento gráfico que merece. Se o leitor ainda não o conhece, não sabe o que está perdendo.

Trilogia de quatro

O Dobro de Cinco, lançado em 1999, é, sem favor algum, um dos melhores momentos dos quadrinhos brasileiros. Ali, Lourenço Mutarelli apresenta ao público o seu personagem-símbolo, o detetive aposentado Diomedes, um autêntico Poirot de subúrbio, gordo, baixinho e canastrão, meio parecido com o José Lewgoy, cheio de problemas pessoais e sempre às voltas com o destino, engenhosamente traçado por seu criador. Esse álbum conquistou o Prêmio Ângelo Agostini e o Prêmio HQ Mix do ano.

Em 2000, veio O Rei do Ponto. E, outra vez, Diomedes, prisioneiro de sua contraditória personalidade, às vezes forte, inteligente e astuto; outras vezes, fraco, ingênuo e imbecil… “Como todos nós, brasileiros…” – detecta Gualberto Costa. A história retoma a ação anterior através de bem colocados “flash-backs”. Com ela, Lourenço levou para casa dois outros troféus HQ Mix, de desenhista nacional e de melhor álbum de ficção. E se fez presente no 11.º Festival de Amadora, em Portugal, abrindo as portas para o Velho Mundo.

A terceira parte da trilogia – A Soma de Tudo – é subdividida em duas. A primeira, editada em outubro de 2001, apresenta novos rumos na carreira de Lourenço Mutarelli e novas possibilidades para a sua arte. Com o autor, Diomedes desembarca em Lisboa, onde, como de costume, um monte de encrencas está à espera do nosso (anti-)herói. O álbum oferece também ao leitor a oportunidade de conhecer um pouco mais da cultura portuguesa e do obstinado perfeccionismo do desenhista. O detalhamento do portal da Igreja dos Jerónimos é um achado capaz de provocar a inveja de Hal Foster (O Príncipe Valente). O segundo volume da terceira parte acaba de sair do forno. E será mostrado aos curitibanos de refinado gosto no próximo sábado, 14/12, às 14 horas, na gibiteria Itiban, da Mitie e do Francisco Utrabo, na Av. Silva Jardim, 845, nesta capital.

Apareça lá, leitor, para conversar com o Lourenço e ouvir um pouco sobre o trabalho dele. Você, certamente, gostará muito de ambos.

Exemplo do pai

Diomedes, na verdade, foi inspirado na figura do pai de Lourenço, que era policial, foi sempre um incansável estimulador do filho e faleceu no ano passado.

“Sempre que eu pensava em Diomedes, o comparava a meu pai”, confessa o artista, hoje com 37 anos de idade, companheiro de Lucimar e pai de Francisco, de sete anos. Continua: “Meu pai era o ponto de referência… Eu pensava no glamour mostrado nos filmes e na literatura policial e pensava nesses homens, como meu pai, nesses seres que simplesmente trabalham como policiais. Pensava no meu pai chegando em casa, pensava em seus pequenos sonhos… inalcançáveis, pensava no quanto a realidade se distancia da ficção. Pensava na morte e em como ela no cinema é diferente da morte registrada pela perícia técnica.

A morte do pai foi um choque irreparável para Lourenço Mutarelli. Ele conta da grande satisfação que sentia quando o pai sentava-se ao lado de sua escrivaninha e passava, lentamente, com satisfação e orgulho transbordantes, página por página do seu trabalho:

“Meu pai, que foi admirador dos clássicos dos quadrinhos, da Era de Ouro, deixava transparecer a sua emoção a cada quadro. Talvez não se reconhecesse em Diomedes, mas como eu, à sua maneira, o amava. Infelizmente, não poderá participar do desfecho da trilogia”.

Mas, onde estiver, estará festejando o seu sucesso, Lourenço.

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