Filmes, debates e exposições em homenagem ao centenário de Beckett

Considerado o "último modernista", o dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett confundia seus biógrafos, especialmente aqueles que buscavam enquadrá-lo em algum gênero artístico. Quando "Esperando Godot" estreou em Londres, em 1955, por exemplo, o crítico literário Kenneth Tynan observou: "Não tem drama, não tem clímax, não tem desfecho; nem começo, nem meio, nem fim". Assim, se foi libertado pelo modernismo da escrita convencional e da psicologia barata, Beckett utilizou o mesmo modernismo para ir até onde podia, utilizando elementos minimalistas e de extrema austeridade. E, é preciso lembrar, "Esperando Godot" foi um entretenimento leve, comparado ao que veio em seguida. Ainda considerado um enigma, Samuel Beckett completaria 100 anos no último dia 13 de abril. Ele morreu em 1989. Por conta disso, uma série de atividades, em São Paulo e no exterior, pretende apresentar as diversas faces do irlandês.

"Era um autor que escrevia para não ser explicado", comenta o ator e diretor Lenerson Polonini. Há nove anos, Polonini vive debruçado sobre a obra de Beckett, impondo-se um ousado desafio, o de encenar toda a dramaturgia do irlandês. Iniciou o repertório em 2001 e, agora, vai encenar nove textos. "São os que apresentam diversas metáforas, como a do homem que vive sem um deus", disse o ator, que leu obras capitais, como "Ulisses" e "A Divina Comédia", para ampliar seu entendimento.

Foi de grande utilidade também conhecer detalhes da biografia de Beckett. Em sua vida e obra, o escritor foi cercado de infelicidade, desde a morte de parentes e amigos até ser esfaqueado numa rua de Paris na década de 1930, passando por seu crescente enfraquecimento. Ao completar 80 anos, evitou qualquer celebração pois considerava um "um triste não-evento e seus duros efeitos".

Beckett sempre se alinhou a escritores como William Faulkner, Vladimir Nabokov, Henry Miller, todos modernistas de segunda geração que chegaram à cena literária no final dos anos 1920 e início dos 30, logo depois que Joyce, Kafka, Proust e Eliot escreveram suas maiores obras. Em comum, o humor sombrio, amargo, zombeteiro até. Foi esse ar que ele respirou ao chegar a Paris em 1928, quando se juntou ao círculo em torno de Joyce e da revista de vanguarda Transition.

Logo, Beckett descobriu o próprio temperamento mórbido e desapegado, embora a ficção produzida na época fosse excessivamente cerebral para gerar algum impacto. Por conta disso, não conseguiu publicar nada. Com o estouro da guerra, passou a perambular e a maturar aquele que seria considerado sua grande explosão criativa e a criação de obras que chocariam críticos e público – já sua primeira incursão teatral, Eleuthéria (1947), apesar do resultado frustrante, apresentava características que se manifestariam ao longo de sua obra.

Beckett, na verdade, despontou como o último representante daquela geração pois somente depois da 2.ª Guerra concretizou a síntese inteiramente original. Nos anos seguintes, ele comporia sua obra em torno de uma visão da transitoriedade da vida, além de saudar o absurdo existencial com um humor característico. Para os críticos, seu pessimismo está sintetizado na afirmação de Nell, a mãe encerrada em uma urna de cinzas mortuárias em "Fim de Partida" (1956): "Nada mais é divertido que a infelicidade".

A ruptura veio com "Esperando Godot", escrita entre outubro de 1948 e janeiro de 1949 e publicada em Paris três anos depois. Beckett escreveu à mão, em um bloquinho de anotações. Quando chegou ao final da última página, virou-o de cabeça para baixo e continuou escrevendo no reverso das páginas.

A trama resume-se a poucas linhas: junto a uma árvore desfolhada, dois vagabundos, Estragon e Vladimir, esperam pelo chamado de um certo senhor Godot, com quem teriam marcado um encontro. A espera infinita é interrompida com a chegada de Pozzo e Lucky, além do menino mensageiro, mas tudo continua indefinido. Com uma estrutura espiralada, a peça mostra que tudo pode recomeçar, ainda que na mesma estagnação da espera. Embora com aspecto clownesco, os vagabundos tratam de questões sérias como a explicação de sua permanência na terra e o rumo que devem seguir, exibindo uma nítida imagem de sua angústia.

Em constante batalha contra seus demônios interiores, Beckett despertava conflitos profundos ao escrever, ainda que representasse a personificação da bondade, generosidade e lealdade inabalável em seu contato com as pessoas – somente quando escritor é que se mantinha fiel aos cantos mais sombrios da própria mente.

Seu temperamento calmo, aliás, não lhe trazia boas novas amorosas. Uma de suas amantes, a tempestuosa Peggy Guggenheim, o chamava de Oblomov, equivalente literário russo para "supérfluo" O que interessa, na verdade, é seu legado literário, que oferece uma leitura irresistível e perturbadora.

Além de homenagem em São Paulo, no Sesc Santana, na zona norte da capital paulista, o centenário de Beckett será lembrado na Inglaterra e na Irlanda com exibição de filmes, debates, exposições de arte e, naturalmente, a montagem de peças. Os principais eventos acontecem no Barbican Centre, em Londres, e no Gate Theatre, em Dublin.

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