Filme sobre Elza Soares será exibido hoje e amanhã no festival In-Edit

Mais um filme sobre ela? Não. My Name is Now, Elza Soares põe, literalmente, a diva diante do espelho, a refletir em fragmentos sobre sua vida. O filme de Elizabete Martins Campos – que será exibido nesta quarta, 8, e quinta, 9, no festival In-Edit – consegue desse modo uma abordagem original sobre essa que é uma das grandes cantoras brasileiras e também uma personagem superlativa. Por suas contradições, pela vida rica e dilacerada, pelo sofrimento e pela busca da serenidade, talvez nunca encontrada.

Polêmica, desbocada, com jeito de quem não tem nada a perder, Elza Soares encara o espelho com a altivez de quem carregou lata d’água na cabeça, se tornou uma artista formidável e não esquece a dureza que foi esse percurso. Encara a passagem dos anos no rosto modificado por intervenções múltiplas. E pode dizer, sem qualquer pudor, que seu tempo é agora, como sugere o título do filme e como se diz no samba de Paulinho da Viola (“Meu mundo é hoje/não existe amanhã pra mim”).

Elizabete, usando técnicas próximas da videoarte, características da escola mineira de cinema, explora (no bom sentido) esse rosto sofrido, enigmático, marcante. Um rosto humano, dizia Merleau-Ponty, é a expressão mais profunda de um ser. Por isso, o rosto de Elza “fala”. Talvez com tanta eloquência quanto as palavras que ela articula. E que, decerto, não teriam o mesmo peso não estivéssemos olhando para esta face tão bem captada pela câmera. Com seus vincos, seus olhos rasgados, a boca intumescida, na qual Elza passa batom, de maneira quase obsessiva.

Há também a opção sonora original, que deixa um pouco de lado interpretações mais tradicionais da cantora e opta por uma de suas modalidades mais características – o scat singing. Canto improvisado, onomatopaico, com sílabas sem sentido, que coloca Elza no registro celebrizado por Louis Armstrong e Ella Fitzgerald. Improvisando em cima de melodias, percorrendo a gama harmônica e criando na beira do abismo, nesses que são os únicos improvisos dignos deste nome. Os improvisos de alto risco. A verdade é que, ao ouvirmos Elza nesses solos vocais, somos conduzidos a sendas profundas da música e da alma, regiões pouco definíveis pelas palavras, onde gozo e sofrimento parecem coexistir, muito próximos. Por isso, ouvi-la, ao vivo, é uma experiência e tanto. Inesquecível. E vê-la e ouvi-la neste filme nos conduz, através de sons e imagens, a esse limite do indizível.

De qualquer forma, o tom do filme é francamente de estudo e não de tese. Passa ao largo do documentário tradicional, informativo. Ou pontuado por palavras de especialistas. Dá por sabida a vida de Elza, e mesmo a cantora se refere a passagens de sua biografia de modo alusivo, lacunar, quase por fragmentos. É assim que relembra a ida ao programa de calouros de Ary Barroso e a resposta que deu quando ele lhe pergunta de onde veio. “Vim do mesmo planeta que o senhor. Do planeta fome.”

Assim, todos também sabemos que Elza foi mulher de Mané Garrincha, num dos casos mais rumorosos dos anos 1960, quando a cantora famosa e o jogador genial se uniram, apesar de ele ser casado em Pau Grande e pai de uma penca de filhos. No filme, aparecem as jogadas chaplinianas de Mané, aquelas que já conhecemos (não são muitos os registros cinematográficos da arte de Garrincha). Mas vemos também imagens muito menos conhecidas. Mané com Elza, o casal trocando carinhos mútuos, como dois namorados. Mané com o filho pequeno, apoiando-o para que bebê dê uns passos vacilantes. É comovente.

Em meio a tudo isso, fragmentos de memória da personagem. Por exemplo, a lembrança do filho morto. A confissão de que subiu o morro, juntou-se a bandidos, cheirou cocaína, quis morrer. A origem miserável, buscando água no asfalto. Alguns sucessos, como a gravação de Se Acaso Você Chegasse, de Lupicínio Rodrigues. Elza intensa, Elza frágil, na beira do abismo, como no scat singing, o canto que a leva para além da música, para além de si mesma, a essa região indefinida na qual talvez experimente algum alívio para sua dor intrínseca.

Este é mais que um retrato multifacetado da estrela. É esboço de um perfil dilacerado, como pintura cubista de alguém que não cabe no registro realista padrão, que extravasa fronteiras e limites. Elza Soares reafirma que seu tempo é hoje. Pode-se dizer que seu tempo é sempre. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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