FHC conta em livro que quase deixou o governo antes do Real

 No auge da discussão sobre o Plano Real – mais especificamente, sobre como tratar a questão salarial – houve um momento em que o então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso perdeu a paciência e quase foi embora. Sindicatos, oposições e até ministros pressionavam para manter a indexação e dar um aumento prévio, principalmente aos funcionários públicos

Manter a indexação significava, simplesmente, destruir o plano.

Numa reunião no Planalto, com esses adversários, na presença do presidente Itamar Franco, a pressão passou do ponto. "Cedi um pouco", recorda-se hoje o ex-presidente, que consentiu um aumento de 5% ao funcionalismo antes de convertê-lo à Unidade Referencial de Valor, a URV, moeda provisória do plano. "Isso depois de eu ter-me levantado da mesa para sussurrar ao ouvido de um dos ministros ?da Casa? que estava cansado de carregar o governo nas costas e pedir-lhe que dissesse ao presidente que poderia substituir-me por algum dos ministros ali presentes, pois parecia que tinham soluções melhores para os problemas do Brasil.

Esse momento de tensão, já nos instantes finais do plano – que, enfim, o conduziu à Presidência em outubro de 1994 -, é um dos episódios que o ex-presidente recorda no livro de memórias políticas que está preparando. Já consideradas, em meios editoriais, como um dos grandes lançamentos do ano, essas memórias estão em fase de conclusão. Se não houver atrasos, devem ser lançadas em maio, pela editora Record

No capítulo dedicado ao Plano Real, ao qual a AGÊNCIA ESTADO teve acesso, Fernando Henrique reproduz, com a costumeira fluência e ironia, grandes conflitos e pequenos detalhes vividos (muitas vezes, sofridos) por ele e por auxiliares diretos – Pedro Malan, André Lara Rezende, Gustavo Franco, Clóvis Carvalho – naqueles 12 meses entre a chegada ao Ministério da Fazenda, em maio de 1993, e sua saída para mergulhar na campanha presidencial, em maio de 1994. Os trechos obtidos são uma versão inicial do trabalho – o que significa que podem ter sofrido releituras, cortes e acréscimos. Mas a paisagem, os personagens e a seqüência de fatos não mudam, até porque a maior parte deles ou ao menos sua versão externa, é de conhecimento público

Salta à vista, por exemplo, o papel essencial que teve o sempre discreto Clóvis Carvalho – que, por sinal, foi um dos dois nomes indicados por FHC para sucedê-lo, em junho de 1994. (O outro, que emplacou, foi Rubens Ricupero). Carvalho "tinha obsessão de introduzir método em nosso trabalho. Cobrava multa de quem chegasse atrasado". De quebra, ficou encarregado da delicada revisão das dívidas dos Estados. O capítulo revive também as intermináveis hesitações sobre como instituir a URV e quando trocá-la pelo real

Ao longo da aventura, Fernando Henrique colhe com prazer algumas doces vinganças contra os que, dia após dia, criticavam e torciam para o plano fracassar. Economistas do PT, como Paul Singer e Maria da Conceição Tavares, são seus favoritos nessa galeria. "Paul Singer, por exemplo, era taxativo: o problema, dizia, é que o Plano de Ação Imediata partia de um diagnóstico falso, o de que a causa da inflação seria a desordem administrativa e financeira do setor público. Além de pedir mais e melhores gastos públicos, afirmava que os cortes e acertos de contas entre União, Estados e municípios não serviam para coisa alguma.

Sobre o outro lado: "Roberto Campos, com fina ironia, escreveu que ainda não tínhamos um plano porque ?nosso simpático ameno e inteligente ministro não resiste ao impulso de agradar a todos?. De novo, tratar-se-ia de uma questão subjetiva: para ?agradar? a Itamar, nada de privatização. Para ?agradar? à Receita, nada de simplificação tributária, e assim por diante.

Num dos trechos finais, FHC afirma que "só o contexto explica" como foi possível estabilizar a economia: foi porque "faltavam condições políticas". E detalha: "A desorganização das forças tradicionais, desde o impeachment de Collor até a CPI dos anões do Orçamento, facilitou a ação decidida do nosso exército de Brancaleone e o Plano Real passou no Congresso. Fossem normais as condições, os beneficiários da inflação ter-se-iam oposto às mudanças com mais força, defendendo seus interesses"

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