Estado, cooperativismo, acervos arqueológicos e bens coletivos

A possibilidade da interação entre comunidades indígenas e sociedade envolvente por meio do cooperativismo e em prol da proteção dos acervos arqueológicos com identidade indígena tornou-se o centro de interesse da dissertação do advogado André Viana da Cruz, defendida na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em junho de 2006. Além de seu orientador, José Antônio Peres Gediel, doutor em Direito, professor da UFPR, procurador do Estado do Paraná, participaram da banca seu co-orientador Igor Chmyz, doutor em arqueologia, professor, dirigente do Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas (Cepa) da UFPR, e Carlos Frederico Marés de Souza Filho, doutor em Direito, professor da PUCPR, e também procurador do Estado do Paraná.

André Viana e Igor Chmyz. Foto de Roseli Santos Cecon.

A justificativa para a escolha do tema ?Uma análise pluralista do cooperativismo com proposta de proteção aos bens culturais: novas perspectivas para os acervos arqueológicos com identidade indígena? apóia-se na existência ?da falta de compartilhamento do significado dos bens ?culturais? indígenas de grande parte da sociedade envolvente; indevida apropriação midiática do tema; despreparo de alguns integrantes do poder público para tratar do assunto e alijamento das comunidades indígenas na proteção?, relata Viana.

Além, disso, explica Chmyz, ?comentei com o André problemas que enfrentávamos com relação aos sítios arqueológicos, especialmente os representados pelas vilas espanholas e reduções jesuíticas, protegidas por lei estadual, mas que se encontram em situação deplorável. A dissertação que acabou produzindo é, em parte, uma prova de que não conversamos em vão?.

Professores Igor Chmyz, Carlos Frederico Marés de Souza Filho e José Antonio Peres Gediel.

Os sítios arqueológicos são contemplados pela Constituição Federal de 1988, art. 231, como patrimônio cultural. Este envolve bens de natureza material e imaterial. No entanto, o tombamento de sítios arqueológicos, conforme o art. 2.0 da Lei n.º 3.924/61, não vem garantindo sua proteção, não somente pela falta de cuidado, mas também por não facilitar a continuidade das pesquisas. Além do reconhecimento geral dos sítios arqueológicos, a Constituição reconhece também o que é específico dos grupos indígenas: organização social, língua, costumes, crenças, tradições, e, para tanto, devem ser protegidos. Estes bens ?culturais? estão fora do comércio, como explicita o Decreto-lei 25, de 30 de novembro de 1937, pois constituem seu patrimônio ou bem coletivo.

A falta de proteção aos acervos arqueológicos não estaria associada à racionalidade da ciência moderna, que refuta os estudos humanísticos, ou ao modo como o direito moderno concebe a construção patrimonialista? Em entrevista, Viana explica:

Zélia: Sua crítica à centralidade economicista da modernidade e do direito moderno está relacionada à construção patrimonialista?

André: Com a modernidade vemos consagrado um modelo econômico que sustenta a construção patrimonialista, ou seja, aquilo que não pode ser trocado comercialmente é excluído, de tal sorte que os bens culturais também são reduzidos a essa racionalidade.

Para o direito moderno, bens são as coisas apropriáveis e valoráveis. Portanto, a noção de bem está diretamente ligada à economicidade e à apropriação. A idéia de apropriação nos remete ao conceito de propriedade, cuja história da garantia contempla a própria história do Direito.

Zélia: Nesta perspectiva os bens culturais estariam despidos de patrimonialidade?

André: Existem direitos que não têm titularidade individualizada, que são fruto de uma garantia genérica e não de uma relação jurídica precisa. São direitos sem sujeitos ou direitos transindividuais, que consideram todos sujeitos. Estes não são apropriáveis e não se integram ao patrimônio individual, na medida que têm uma titularidade difusa. Não podem ser alienados, tampouco têm valor econômico.

Zélia: Como sugere ultrapassar o direito positivo?

André: Há que se discutir o fenômeno cooperativo em suas estruturas inconscientes, de modo a ultrapassar limites e contornos do direito positivo, desvelando um conteúdo que se constrói a cada experiência. A formação de uma rede de cooperação pode representar um espaço que contemple os valores das comunidades envolvidas no processo de proteção dos conjuntos arqueológicos, adote a identidade cooperativa não economicista nas interações e possibilite o respeito à autodeterminação indígena para recompor a sua história. É uma política de integração amplamente usada nos sistemas estrangeiros, nos quais o órgão técnico responsável catalisa a participação de associações, sindicatos, escolas, academias, núcleos de preservação, organizações e representações do povo no processo de preservação.

Zélia: Você enfatiza que o Estado não é a única possibilidade de organização sociojurídico-política?

André: A construção de mecanismos de proteção dos bens arqueológicos indígenas reconhece o pluralismo cultural e jurídico não assimilado pela figura do Estado moderno, cuja influência na trajetória latino-americana representa o encobrimento da existência da sociodiversidade.

A sociedade moderna se funda no interesse do espaço privado e na ?ética da racionalidade liberal-individualista?, sendo o Estado concebido como um indivíduo, ainda que busque integrar a vontade de todos.

Mas o Estado não é a única possibilidade de organização sociojurídico-política. As sociedades indígenas podem ser fonte de modelos organizativos sociais, particulares e universalizáveis, sendo possível o entendimento entre o poder público, movimento indígena e comunidades.

Zélia: O que falta para que isso ocorra efetivamente?

André: Uma educação voltada para a preservação coletiva da memória e dos conjuntos materiais e simbólicos, com o devido respeito às diferenças. Isto quer dizer que é prioritária a adoção de uma pedagogia que parta da exterioridade e busque a conscientização. Paulo Freire nos dá bons pressupostos de uma pedagogia assim: Vamos chamar os índios e ouvi-los. É um bom ponto de partida.

Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestre em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.

zeliabonamigo@terra.com.br

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