Editora Globo reedita obra de Mário Quintana

d51.jpgA rua dos cataventos, Canções e Sapato florido inauguram a reedição das obras reunidas do poeta gaúcho, cujo centenário de nascimento será comemorado em 2006. A coleção será lançada com debate no dia 28 de abril, às 19h, no teatro Bruno Kieffer da Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre.

Se a história da literatura brasileira tem enorme dívida para com Quintana, o mesmo não acontece com o público leitor. Esse contingente, restrito por algum tempo àqueles que acompanhavam, já nos anos 1950, o Caderno H nas páginas do Correio do Povo, então um dos jornais mais populares do Rio Grande do Sul, cresceu à medida que o século XX foi amadurecendo. A Antologia poética de 1966, promovida pela prestigiada Editora do Autor, colocou o poeta no circuito nacional, processo incrementado pela edição de Poesias, de 1972, e intensificado a partir da segunda metade da década de 1980. Desde então, a popularidade de Mário nunca deixou de aumentar, ainda mais se lembramos que ele morreu há mais de dez anos.

d52.jpgAo lado de Vinícius de Moraes, Mário Quintana tornou a poesia lírica uma experiência alcançada com prazer por todo tipo de leitor, sem perda de qualidade, facilitações ou concessões à moda. Da popularidade do autor resultaram também algumas conseqüências, uma delas sendo a disseminação de seus poemas em edições variadas, grande quantidade de coletâneas e, como seria natural, muita dispersão. Urgia o retorno ao começo, retomando a trajetória da obra de Quintana de modo sistemático, científico e, ao mesmo tempo, criador. São esses os objetivos e o significado da iniciativa da Editora Globo que, sob a coordenação de Tânia Franco Carvalhal, promove o lançamento da Coleção Mário Quintana.

A denominação expressa, desde logo, a finalidade do trabalho, que compreende não apenas a reedição dos livros do poeta sulino, mas também a atribuição de uma unidade às variadas manifestações de sua criatividade. Entender Mário Quintana como uma coleção representa valorizá-lo enquanto entidade independente e auto-suficiente, completo e inteiriço, na condição de grande autor da literatura brasileira contemporânea. A concretização desse objetivo justificaria, por si mesmo, o empreendimento editorial. Mas vale a pena evidenciar outras virtudes do trabalho em questão.

Uma delas diz respeito à recuperação das obras de Mário Quintana na sua seqüência original, ressalvando-se a identidade primitiva de cada uma delas e ressaltando-se seu período mais produtivo, entre 1940 e 1980. Com efeito, o poeta tratou com grande cuidado a produção de cada um de seus livros, conferindo-lhes a unidade formal e editorial que os caracterizou desde o início. Ao longo do tempo, porém, esse trabalho foi sendo desfeito, dado o aparecimento de muitas coletâneas de natureza similar ou a reunião de livros diferentes em volumes unificados, como é o caso da edição das Poesias, em 1972.

Se esse procedimento permaneceu válido enquanto foi vivo o poeta, pois conferia atualidade aos textos e mantinha o autor em permanente contato com o público, perdeu ele o significado após seu falecimento. Hoje, edições semelhantes podem confundir o leitor, de modo que se torna necessário restaurar a identidade primeira das obras. Cabe igualmente verificar a idoneidade de cada poema, compará-lo às suas versões posteriores, anotar as alterações e promover uma edição confiável.

Eis a natureza do trabalho do organizador, confiado a uma experiente estudiosa da obra de Mário Quintana, Tânia Franco Carvalhal, que não apenas desempenhou essas tarefas com grande competência, como procurou valorizar cada livro, incorporando a eles estudos introdutórios elaborados por reconhecidos especialistas no assunto. O resultado não pode ser melhor, pois deparamo-nos com um novo Mário Quintana. Novo porque seus textos aparecem com seu frescor original; novo também porque se apresenta como objeto digno tanto do reconhecimento de seu público, sempre e cada vez mais fiel, quanto, e principalmente, dos historiadores da literatura.

Esses, que nem sempre souberam avaliar com justiça o mérito de um dos mais lidos poetas do país, disporão de meios concretos e palpáveis para verificar o lugar que Quintana ocupa não apenas no nosso imaginário, mas também na nossa trajetória cultural. Verificarão que se trata de um artista de alcance nacional, apesar de nunca ter saído de sua região natal; e constatarão a audácia da escrita daquele pequeno senhor que nunca temeu se contradizer, contrariando o que se esperaria de um moço bem comportado.

Educado e nunca perdendo a compostura, Quintana desafiou os bons costumes literários. Cabe a todos nós, agora, de posse da edição definitiva do melhor de sua obra, apreciar o seu valor e descobrir porque permanentemente gostamos tanto dela.

Os três primeiros volumes

A trajetória literária de Mário Quintana começa pela tradução, campo onde sua contribuição foi inestimável. O ano de 1934 marca a primeira publicação de uma tradução de sua autoria: Palavras e sangue, de Giovanni Papini. Passa então a traduzir para a Editora Globo obras de diversos escritores estrangeiros: Fred Marsyat, Charles Morgan, Rosamond Lehman, Lin Yutang, Voltaire, Virgínia Woolf, Maupassant, dentre outros. Porém, a ênfase desse seu trabalho consiste no tour de force que foi a tradução dos três primeiros volumes de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust.

Sua estréia na poesia data de 1940, com a publicação de A rua dos cataventos, pela mesma Editora Globo que agora o reedita. O livro obtém ótima repercussão e seus poemas logo passam a figurar em manuais escolares e antologias. Trata-se de um livro de sonetos, onde a cadência prosaica, cheia de informalidade e de índices afetivos, programaticamente ressaltados pelo poeta, são moldados pela métrica, pelo ritmo e pelas rimas, produzindo um contraste inusitado entre forma e fundo, entre a matéria (movente) e o tratamento artístico (fixo) que Quintana lhe dedica.

Seu segundo livro de poemas, Canções, é lançado em 1946 pela mesma editora, com ilustrações de Noêmia. O salto decisivo que Quintana empreende nesse livro, em termos formais, consiste na utilização do verso livre e na ampla gama de poemas escritos em verso branco, ou seja, com métrica mas sem rima. Boa parte desse influxo advém da poesia modernista, com a qual Quintana, em certo sentido, afina sua escrita. Outra mudança que se observa nesse livro é de ordem temática: a inspiração popular. Como assinala Gilda Neves Bittencourt no prefácio de Canções, diferentemente de A rua dos cataventos, o poeta deixa-se levar ?mais ao sabor do próprio poema, permitindo que ele o conduza pelos caminhos da sonoridade e da dança, explorando inclusive o espaço gráfico e desligando-se do conteúdo significativo em favor do elemento sonoro dos versos?.

O desenvolvimento natural da poética de Quintana, que privilegia tanto a informalidade e um tipo de prosa talhada em verso, aparece em seu livro seguinte: Sapato florido. Publicado em 1948, esse livro teve dificuldades de ser enquadrado em termos formais. Misto de tom poético e desenvolvimento em prosa, espécie de poesia posta em prosa, essa obra parece ter atendido a algumas necessidades internas da linguagem de Quintana. Se o poeta sempre foi afeito à descrição de estados afetivos cotidianos, ao ritmo lento das frases, à criação de personagens do dia-a-dia, ao humor e aos aforismos, Sapato florido pode ser visto como um ponto de viragem em sua obra, espécie de síntese dos livros precedentes. O que Quintana desenvolve em Sapato florido é o famoso gênero do poema em prosa. Como adverte Armindo Trevisan, um dos antecedentes ilustres deste tipo de gênero é Baudelaire, em seus Pequenos poemas em prosa.

Próximos volumes

A previsão para 2005 é lançar ainda mais quatro volumes: Aprendiz de Feiticeiro, Espelho mágico, Apontamentos de história sobrenatural e Esconderijos do tempo. O restante deve ser lançado até o final de 2006, ano do centenário de nascimento do escritor. Assim, em 2006 devem sair: Baú de espantos, A cor do invisível, Caderno H, Porta giratória, Da preguiça como método de trabalho, A vaca e o hipogrifo, O batalhão das letras e as antologias Preparativos de viagem, Antologia pessoal, Velório sem defunto, Nova antologia poética e 80 anos de poesia.

Evento

A coleção Mário Quintana será lançada com debate no dia 28 de abril, às 19h, no teatro Bruno Kieffer da Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre. Participam do evento Tânia Franco Carvalhal, organizadora da coleção e prefaciadora de A rua dos cataventos, Armindo Trevisan, prefaciador de Sapato florido, e Gilda Neves da Silva Bittencourt, prefaciadora de Canções. Haverá leitura de poemas com o ator João França. A Casa de Cultura Mario Quintana fica na Rua dos Andradas, 736, no Centro.

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