Diga não aos livros!

Tenho saudade do tempo em que ainda não havia aprendido a ler. A vida era tão mais leve entre brincadeiras à sombra dos laranjais. Não precisava ficar debruçada sobre cartilhas e cadernos, horas sem conta, espremendo o cérebro (é verdade que ainda bem pequeno) para descobrir o que aquela professora meio-megera, meio-bruxa, queria que eu fizesse com letras e números.

Mal sabia eu que ainda era o paraíso aquele conjunto meio desordenado e sem qualquer sentido de palavras! O Ivo que via a uva, o macaco matuto comendo mamão e o papai que passava pomada na panela eram companheiros numa amizade sem conflitos nas páginas coloridas da cartilha, com uma graça forçada, semelhante ao sorriso amarelo após uma gafe monumental. Eles se davam muito bem porque não precisavam ter coesão e coerência, palavrinhas infernais que aprendi a pronunciar mais tarde nas aulas de redação. E que nunca soube muito bem para que serviam.

Hoje, após muita reflexão, concluo que as atividades de ler e escrever deveriam ser banidas do currículo das escolas. Afinal, se as estatísticas e todas as provas a que se submetem os estudantes brasileiros, e que envolvem essas atividades, sempre acabam em números mínimos e vergonhosos, por que insistir nisso? Quando as pesquisas sobre qualquer atividade empresarial, sobre os problemas da cidade, sobre o valor do salário mínimo dão resultados irrisórios, os governantes não as ignoram? Então… Vamos fazer o mesmo com a leitura e a escrita. Ah, e também com a matemática (por sinal, dispensável depois que inventaram a calculadora!).

Acho que os estudantes ficariam muito mais contentes se não precisassem ler. Principalmente se fosse para adquirir o tal de conhecimento sobre o mundo. Acho desnecessário saber sobre o mundo. Nunca vou sair de minha cidade: para que me serviria o mundo? Se for para saber sobre a história, dispenso a leitura. Nada tenho a ver com gente antiga e com acontecimentos já terminados. A vida começa hoje e toda a história começa e termina comigo. Se for para aprender sobre mim mesmo, como os professores insistem em dizer quando falam da leitura da literatura, também dispenso. Já me conheço o suficiente: todos os meus gostos e preferências eu já conheço. Quando tenho alguma dúvida, ela é resolvida no meu grupo. O que meus amigos e eu decidimos, todos adotamos. Não tenho nada a esconder. Afinal, querer um carrão, uma casa bonita, férias na praia e um carrinho cheio no supermercado todos querem. E não precisam de estudo para isso. Podemos conseguir com alguma sorte na loteria e alguns bicos em feriados ou em final de ano. Lógico que fica mais fácil se o sujeito dá sorte de virar cantor ou se aprender a jogar futebol com alguma qualidade.

Dizem que tenho que ler para, ao menos, saber do que se passa na cidade, pertinho de mim. Para que me serve saber das notícias? Elas acontecem sem minha participação. E vão continuar acontecendo. Só me interessa o resultado do futebol. O resto é preocupação que não preciso ter.

Nem sei porque continuo indo à escola. Meus pais dizem que é para que eu tenha uma vida melhor que a deles. De que adianta? Eles estudaram mais que eu e, no entanto, dão um duro danado para sustentar a família. Se estudar é tão importante, por que é que os outros desvalorizam o trabalho dos que passaram vários anos estudando e lendo um monte de textos?

Outro dia fiquei sabendo que um ex-colega de escola conseguiu emprego numa livraria. É esquisito como tem gente que põe dinheiro nesse tipo de comércio. Passei lá nessa loja por acaso e entrei para falar com o cara. É verdade que tinha uns livros bonitos nas prateleiras, parecia coisa de muito luxo e importância. Abri um deles e li um pedaço de uma página. Não entendi nada: algumas palavras eu conhecia, mas as frases não faziam sentido para mim. Achei um desperdício de papel e tinta: de que serve um livro se as pessoas não conseguem entender o que lêem? O colega falou que isso era porque eu não sabia ler. “Como não?”, respondi. “Tenho até diploma que diz que fui alfabetizado!” Aí ele me disse uma coisa que me deixou muito impressionado. “Pior analfabeto é o que aprendeu a ler e não lê!” Me senti ofendido. Mas, dentro de mim, reconheci que ele estava certo. Mas eu não estava ali para dar a ele o gostinho do acerto. Saí da livraria, de cabeça erguida, dizendo que livro que não se entende é coisa mais que inútil. E livraria é lugar de gente que não tem, ou que não sabe, o que fazer na vida. Melhor que livro são os games. Melhor que os games, só o rock. Melhor que eles, é a azaração. Ler, para quê?

A experiência acumulada sobre os malefícios da leitura em meus anos de vida me deu a idéia de criar um movimento de alerta a meus amigos, e até aos inimigos. Eles estão indo na conversa dos adultos. Ficam na dúvida e começam a pensar que a leitura e o estudo podem lhes trazer benefícios futuros. Vou criar uma associação dos inimigos da leitura que terá como palavras de ordem “Abaixo os livros!”. Tenho certeza que muitos virão se unir a mim. Penso que só assim acabaremos com essa farsa de civilização, história e cultura. O que vale mesmo é a azaração. O resto é silêncio. Palha.

***

Nota de pesquisa: Este texto foi encontrado – às vezes em cópias amassadas e rotas, outras vezes em papel dobrado com cuidado e preservado – em bolsos de alguns milhões de brasileiros, como se fossem breves, profissões de fé, palavras de sabedoria, crença.

Marta Morais da Costa

é professora e diretora dos cursos da área de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.Home page: htpp://www.orbit.pucpr.br/jornais

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