Dia de lembrar Paulo Leminski e Alice Ruiz

Agosto é mês de cachorro louco e de Paulo Leminski. Não passa ano em branco. Está virando rotina, como feriado, tipo Corpus Christi, quando pintam as ruas para o padre passar com a procissão. A velha lengalenga. Se estivesse vivo, na próxima terça o polaco faria sessenta e seis. No começo era acontecimento festivo: Perhappiness, com exposição, vídeos, filmes, conferências, lançamentos de livros, leituras e performances. Com o tempo, perdeu força, ficou o hábito.

‘Hoje à noite. Lua alta. Eu faltei. E ninguém sente. A minha falta’. Falta de um sujeito como Leminski é sentida em qualquer lugar que o tenha. Mas ele deixou obra para preencher o vazio. Entrou na categoria dos poetas de língua e lugar cantados por gerações seguintes. Isto é tudo que um poeta almeja. O resto é folclore, curiosidade e lenda: ele se expressava em alguns idiomas, foi poeta, romancista, tradutor, biografo, professor e judoca. Tudo selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado, pra quem quiser pegar.

Leminski se apresentava como cachorro louco do mês em que nasceu. ‘Paulo Leminski é um cachorro louco que deve ser morto a pau e pedra’. Era só um poema. Seu destino era ser poeta: ‘Não discuto com o destino, o que pintar eu assino’. Mas todo ano falando a mesma coisa parece redundância. Como na escola: repetição tediosa. Mal de que Leminski não padecia. O certo é que o poeta não será esquecido. Escolas falam dele, vestibulares falam, agostos falam, pedreiras têm seu nome, concurso literário tem seu nome, Ademir Assunção fala em cidades dos confins ou na paulicéia. Tem gente solitária num quarto neste momento dedilhando um violão e cantando uma letra de Leminski em algum lugar.

Leminski fez dois livros díspares em prosa – o experimental Catatau (1975) e Agora é que são elas (1984), como um jogo maluco. Os trabalhos de biografias sobrevivem como meras curiosidades bibliográficas e as traduções são interessantes. Talvez fosse boa ideia antes de se perderem reunir em livro as entrevistas. Leminski era um grande entrevistado. E textos esparsos como os publicados no Correio de Notícias. Não altera a obra, mas ajuda a ampliar a compreensão. Na poesia ele cativou. Ainda hoje é repetido e imitado. Falar da poesia de Leminski é chover molhado.

Terminaria aqui não fosse Alice Ruiz. Há um estranho divórcio na reverência que se faz à obra de Paulo Leminski e no olhar quase de soslaio para a obra dela. Talvez a expressão exata fosse injustiça. E por pelo menos três motivos: a obra de Alice é vigorosa, é a que mais dialoga com a de Paulo e como não bastasse, embora relativamente vasta, ainda está em construção. O que não é pouco. Claro, o primeiro morreu e virou imortal. Mas isto é ainda mais bizarro: Alice teria de fazer o mesmo caminho, para dedicarlhe o devido?

O incompreensível é que Alice é o outro lado do espelho. A obra dela dialoga com a dele – ou vice-versa. Nenhuma outra herdeira das gingas verbais de Leminski se cruza no universo literário com tanta intimidade. Houve tempo em que não se falava de um sem se falar de outro, assim como era obrigatório falar de Caetano ao pensar em Gil. Como fosse impossível compreender um sem entender o outro. Claro que cada um tem suas individualidade e obra, mas a existência de familiaridade remete uma coisa à outra – e ajuda a entender o contexto. Então veio a morte de Leminski. Um pouco antes a separação de Paulo e Alice. Com todos os inconvenientes que morte e separações provocam. Talvez pudor, choque, amizade, respeito devido, todas estas coisas levassem a uma reverência. A homenagens sucessivas para o legado de Leminski não perecer. É compreensível. O que não é compreensível é algo vivo em construção como a poesia de Alice descolar do ambiente a que pertencia porque este de repente ficou solene. O irreverente Leminski diante dos reverentes admiradores.

O perigo da reverência pela reverência é engessar a memória. ‘Eu queria tanto ser um poeta maldito a massa sofrendo enquanto eu profundo medito’. Leminski está longe de ser maldito hoje. Está quase clássico. É adorado pela moçada. Malditos são Madame Satã, Plínio Marcos, Jorge Mautner, Roberto Piva, e outros. Não há perigo de alguém esquecer quem foi e o que fez Leminski. Mas a impressão que se tem é que não se olha e tampouco se lê – a plebe ignara -com a atenção que se deve o que Alice construiu e ainda constrói. Embora estejamos vivendo uma época em que a mediocridade pontifica orgulhosa, ainda assim manter em biombos o trabalho poético de Alice é cometer duas faltas: de justiça e de elegância. E talvez este seja o momento adequado para se falar isso, até por falta de coisa nova para se falar de Paulo Leminski. Por que a obra dela integra o universo em que se insere a obra dele, da mesma forma que no Olimpo não havia só um deus.

Se levarmos em conta que Leminski morreu em 1989 e após um hiato de oito anos Alice publicou nove livros (Desorientais, Haikais, Poesia pra tocar no rádio, Yuuka, Sala de Frutas, Conversa de Passarinhos, Dois em Um,Três linhas e Boa companhia), os dois últimos no ano passado, é de conjeturar que a forma de Leminski fazer poesia continua tão viva quanto antes de sua morte. E esta série de nove livros é superior à primeira iniciada em 1980 com Navalhanaliga, que rendeu sete livros, o último dos quais Vice Versos de 1988.

Debruçar hoje sobre a obra de Alice é uma forma mais criativa de compreender a poética de Leminski. Há as mesmas entonações, frescor e agilidade, jogos de palavras e de sentidos. E é por esta razão que em vez de fazer mais uma daqueles entediantes evocativos dos predicados do poeta, preferi algo na mesma linha pulsante que ele traçou e que está ainda entre nós. O trabalho de alguém que afiou a navalha na mesma pedra e não virou pedreira. Por esta razão, eu presumo, e pode ser apenas presunção, embora acredite que seja o contrário, a maneira de homenagear hoje o trabalho de Paulo Leminski é retirar do relativo limbo o refinado trabalho de Alice e dar a ele a mesma publicidade. Está certo que as civilizações costumam reverenciar os mortos – mas é muita crueldade pedir a um poeta morrer para receber as honras que merece.

Não passa estação sem coisas frescas de Alice. Como dia e noite se sucedem; como a primavera está por vir. A moça convida o leitor, o ouvinte ou o cantor: ‘Vem brincar comigo, vamos até onde possa ser só riso’. Depois de dizer: ‘Eu só brinco quando é muito sério ser o teu brinquedo, não tem mistério, não tem segredo’ (Brinquedo sério), letra entre as vinte inéditas esperando cair fora do sítio, ganhar as ruas, ganhar os rádios, os i-pods, os ouvidos antenados. ‘Pode que muita gente/ veja no que escrevo/ tudo que sente/ e vibre, e chore e ria como eu, antigamente, quando não sabia/ que não há um verso, amor,/ que te contente’.

Querem mais? Corram atrás de Alice. Por estas e outras é que neste agosto, falo da poesia viva de Alice. O fogo que ardia no peito do poeta é o mesmo que crepita no dela. É a forma eloquente de dizer que o legado do polaco está vivo e floresce todos os dias nas mãos de quem entende do assunto. Tanto quanto. Ela. Alice.