Cultura e poder na antropologia contemporânea

A antropologia, que até os anos 70 era considerada disciplina menor por muitos, está com espaço cada vez maior na sociedade. ?Até que ponto é possível enfrentar o desafio de denunciar práticas que são nefastas para o destino de humanidade?? Esta foi a questão inicial colocada recentemente por Guita Grin Debert, antropóloga, doutora e professora da Unicamp – Universidade Estadual de Campinas, em palestra ministrada na UFPR – Universidade Federal do Paraná.

Atuante na área de estudos da cultura e política, discorreu sobre o artigo publicado por Laura Nader, em 1969, em coletânea organizada por Dell Hymes, intitulada Reinventing anthropology (Reinventando a antropologia). No artigo, Nader sugeria que os antropólogos passassem a estudar a dominação e a responsabilidade na sociedade norte-americana. Além de tal iniciativa ter efeito energizador da antropologia, teria também relevância democrática, entre outros benefícios sociais.

Emoção da indignação

Os primeiros estudos sobre parentesco e organização social, realizados por Morgan, caracterizavam-se pela indignação devido à forma como os índios eram expulsos de seus territórios. ?Se os jovens antropólogos sabem que existem problemas fundamentais que afetam o futuro do Homo sapiens?, disse Debert, ?não podem ficar presos a um programa de pesquisas que depois dos anos 50 deixou de estimular a emoção da indignação. A dificuldade de fazer uma crítica cultural mais profunda se deve à fragilidade do conhecimento que se tem da própria sociedade?.

Guita Grin Debert.
(Fonte www.unicamp.br).

A palestrante destaca que a antropologia está bem preparada para sofisticar esse conhecimento, porque, como mostra Nader, pouco ajudaria a leitura de documentos escritos por instituições poderosas para entender as decisões que são tomadas no congresso ou em uma empresa que recebe financiamentos específicos. São necessários estudos minuciosos que levem em conta as relações, valores e práticas que dificilmente são identificadas no papel. Essa compreensão exige o treino e a familiaridade com que o antropólogo trabalha com o princípio de reciprocidade e com a dimensão cultural, quando analisa práticas que não podem ser explicadas como frutos de cálculos racionais.

A importância da crítica cultural no coração da disciplina

?No Brasil, os estudos detalhados da vida nos bairros de periferia, dos novos movimentos sociais, da umbanda, das comunidades eclesiais de base, do pentecostalismo, feminismo e sexualidade ofereceram um novo panorama da vida política brasileira. O estilo quase desprovido de termos técnicos, com o qual apresentamos nossos dados, favoreceu o acesso a um público que ultrapassa antropólogos ou cientistas sociais; nossas discussões se ampliaram para além dos muros da universidade, com o conseqüente sucesso de uma disciplina que antes era vista como marginal ou menor nas Ciências Sociais?, disse Debert.

Para compreender a transformação
da velhice num problema social
é preciso reconhecer a existência
de forças dinâmicas fora dos
grupos de idosos.
(Fonte www.unicamp.br).

O efeito energizador na antropologia norte-americana acabou chegando não do texto de Laura Nader, mas no espaço encontrado pelos novos antropólogos para apresentarem novos conteúdos para as polêmicas no interior da disciplina e recolocarem no coração da disciplina a importância da crítica cultural. No entanto, na prática ?a crítica cultural foi uma promessa não realizada; não foi além de menções vagas ao colonialismo e às relações de poder que se estabelecem entre observador e observado, o que advém da dificuldade que o antropólogo tem de conhecer sua própria sociedade?.

O estranhamento é fundamental

Debert critica o senso comum e diz que o estranhamento é fundamental ao se justapor duas culturas, que não há necessidade de ser nativo para compreender o nativo, mas exige-se sofisticação e refocalização no que concerne aos objetos estudados pela antropologia urbana. Enfatiza que pesquisas sobre meninos de rua, grupos de idosos, minorias étnicas ou moradores da periferia não podem se limitar a uma análise de representações ou a uma descrição de estilos de vida destes grupos. Exigem que se considere a trama institucional envolvida nos espaços percorridos por esses grupos.

Com relação à sua atuação de pesquisadora de grupos de terceira idade, diz que começou descrevendo como os idosos se expressavam sobre sua experiência, passou à reflexão de como essa experiência da velhice se transforma em assunto de experts (peritos). Estes, além de definirem as necessidades dos idosos se encarregam de formar outros especialistas no tratamento da velhice. Para compreender a transformação da velhice num problema social é preciso reconhecer a existência de forças dinâmicas fora dos grupos de idosos pesquisados, como os gerontólogos, de um lado, e a mídia, de outro, em um processo dinâmico de interlocução que exige redefinições constantes em seus respectivos discursos, ao mesmo tempo em que dispõem de aparatos extremamente eficazes para divulgá-los.

Para Debert, no que se refere ao estudo dos grupos e instituições mais poderosas, o potencial da pesquisa antropológica tem sido pouco explorado na análise dos conflitos e das disputas entre grupos dominantes, com o intuito de monopolizar e estabilizar hierarquias, e de como esses conflitos afetam a própria vida dos antropólogos e a dos grupos tradicionalmente estudados pela antropologia.

O desafio mais instigante para os estudos de cultura e poder, na atualidade, disse a antropóloga, ?é procurar entender como se dá a interlocução entre os fragmentos em uma sociedade que tem, como condição de sua própria reprodução e integração, o acirramento das particularidades e a fragmentação do público de consumidores. Se esse novo desafio exige a revisão de alguns dos procedimentos clássicos que marcaram a disciplina, a antropologia encontra-se especialmente adequada para responder a ele?.

Zélia Maria Bonamigo – é jornalista, mestre em Antropologia social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná

zeliabonamigo@uol.com.br

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