Cia. Hiato lança ‘2 Ficções’

Cada palavra carrega em si uma determinada maneira de ver o mundo. Em japonês, o termo komorebi serve para descrever o momento em que a luz do sol é filtrada pelas folhas. Para os alemães, waldeinsamkeit é o modo preciso de se nomear o sentimento de solidão que uma pessoa experimenta quando está em contato com a natureza. Na Itália, pentimento quer dizer arrependimento, mas é também o jeito de se falar da alteração em uma pintura. Aquela situação em que um quadro é restaurado e ficam evidentes seus rascunhos, mostrando que o artista mudou de ideia enquanto pintava.

A cia. Hiato tomou emprestada essa noção de outro idioma para organizar 2 Ficções, que entra em cartaz nesta terça-feira, 18, no Sesc Pompeia. Nesse novo espetáculo, o grupo mantém evidentes todos os vestígios de sua criação. Abre a possibilidade de entrevermos os elementos que foram descartados, as ideias que mudaram de lugar, os rastros de memória e também de obras literárias que foram amalgamados nessa construção.

Ao espectador, são oferecidas duas maneiras de conhecer a obra. E, em cada uma delas, há diferentes pistas para entender o intrincado jogo de realidade e ficção proposto. Para a plateia A, o percurso começa em uma espécie de museu, que recompõe a casa de infância do diretor, Leonardo Moreira. Por meio de um audioguia, os atores conduzem o público nessa visita ao passado. Trata-se de um espaço em ruínas, com amontoados de tijolos, fios expostos e móveis quebrados.

Lugar onde jazem lembranças do quarto de criança, das brincadeiras em família, do enterro do pai. Ao visitar a “exposição”, esse grupo tem acesso ao material que subsidiou o espetáculo. E, quando finalmente estiver assistindo à peça, terá a chance de entender qual a origem daquilo que aparece em cena. “Esse espectador se torna um cúmplice do nosso processo”, comenta o encenador. “É como se ele visse a obra de dentro da coxia.”

Caberá à segunda plateia vivenciar uma experiência que começa de outra maneira, mais próxima do que usualmente ocorre em salas de espetáculo. Acomodada diante do palco, essa parcela dos espectadores acompanhará a encenação de Mir. Ouvirão dos intérpretes tratar-se de uma peça inacabada, um texto deixado pelo diretor (que supostamente já estaria morto a essa altura) e que eles nunca teriam conseguido encenar. É preciso imaginar que dez anos se passaram desde sua concepção até o presente. Eles falam como se estivéssemos em 2024.

Não importa em qual das duas plateias se está. De qualquer ponto de vista, a morte (ou sua perspectiva) aparece no horizonte. “Toda história é a história de alguém que vai morrer”, diz uma das atrizes. Mas não se sabe nunca de qual morte exatamente se está falando. Da que já aconteceu ou da que vai acontecer? De verdade ou brincadeira?

As camadas de metalinguagem se multiplicam para embaralhar o jogo. Contribuem ainda para sublinhar um questionamento sobre o caráter essencialmente efêmero do teatro e uma reflexão sobre o poder da ficção: Teria ela a capacidade de reparar um dano verdadeiro?

2 Ficções descende intimamente do projeto anterior da companhia. Ficção, que estreou em 2012, era um conjunto de seis solos em que os integrantes da Hiato se detinham sobre episódios de suas próprias vidas. O caráter autobiográfico, portanto, era um dos aspectos centrais da obra. Assim como a proposital confusão entre verdade e invenção.

“Ficção nos colocou em um lugar que precisava ser problematizado”, pontua Moreira, duas vezes vencedor do Prêmio Shell de Autor. “Surgiu uma série de questionamentos éticos sobre essa autoexposição. Até que ponto interessa para o público um assunto privado? Isso não é exibicionismo ou vaidade?”, pergunta ele.

Outro aspecto desse trabalho prévio que retorna agora é a busca por uma simplicidade cênica. Uma quebra da ilusão do teatro. Em Ficção, não havia cenografia, trilha sonora ou iluminação. Para compor 2 Ficções, todos esses elementos são trazidos de volta. Mas seus procedimentos precisam ser expostos. O cenário é construído pelo atores diante do público. Os contrarregras estão permanentemente expostos e chegam a tomar parte no que acontece no palco. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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