Balzac & Flaubert

“Que homem seria – ou teria sido – Balzac, se tivesse estilo!” A afirmação, injusta, incompreensivelmente injusta, é de Flaubert, numa das suas cartas. Todavia, é público e notório que Balzac jamais pretendeu ser um estilista “tout court”. Pelo menos um estilista da linhagem de Flaubert, o mestre indiscutível do “ostinato rigore” estilístico, formal.

Na verdade, a intenção de Balzac não foi jamais a de erigir (um verbo que Flaubert abominava, por razões que só Freud poderia explicar…) um monumento, um Escurial de estilo. Sua intenção era mais ambiciosa: criar uma obra, um mundo de vida. Pretendia criar uma pequena humanidade, construída, criada com o sangue do verbo.

Não quer isso dizer que o gênio da “Comédia humana” e, dentro dela, de “Ilusões perdidas” e “O pai Goriot”, não tinha estilo. Tinha. Aliás, tinha estilos, no plural. Só que o estilo era para ele utensílio, instrumento, ferramenta, meio, “modus operandi” – e não um fim em si mesmo. Ele não chega ao extremo de ser, como Flaubert na sua obra, uma estrutura, ou melhor, uma superestrutura formal: é apenas a epiderme do texto, não a sua reverberação cintilante.

O estilo balzaquiano, em última análise, estava a serviço da vida entremostrada nas páginas incontáveis da sua ficção. Perguntaram-lhe um dia: por que você escreve tanto? Resposta de Balzac: infelizmente, não tenho tempo para escrever menos. E poderia acrescentar: à maneira de Flaubert. Na verdade, a vida que pulsa nas entranhas da sua divina comédia, perdão, da sua comédia humana, é muito mais intensa do que aquela que sacode o coração do organismo romanesco infinitamente menor (mas nem por isso menos admirável, tenho que admitir) do mestre de “Madame Bovary” e “Sallambô”. Neste, ainda que admirável, talvez inexcedível em termos puramente estéticos, a vida parece amordaçada, contida, manietada. Quando não soterrada por uma camada de perfeccionismo inaudito.

Se Flaubert é todo feito de mármore, bronze, cristal e ouro, Balzac não passa (e ao dizer Balzac eu estou personificando a sua humanidade de dois mil personagens, que fez dele um “concorrente” do Registro Civil), de um amontoado informe de carne e sangue, vísceras e humores, um “caldo de cultura” protéico, uma amálgama de sonhos e ilusões, desespero e náusea. Se um tem algo de um deus hierático do Olimpo, o outro tem tudo das grandezas e misérias humanas, das suas luzes e sombras, dos seus instantes genesíacos ou apocalípticos. Da sua guerra e paz.

Ambos – Flaubert e Balzac – são grandes, imensos. Mas quem negará que a grandeza de Balzac tem algo mais a ver com a plenitude do homem concreto, com a inteireza da humanidade imperfeita?

Sim, enquanto Flaubert, com os olhos postos na vida, pensava sobretudo na possibilidade de transfigurá-la, com o sopro ardente e demiúrgico da arte, Balzac, mesmo quando focalizava a própria arte, exigia que ela se submetesse ao império autocrático da própria vida.

Numa perspectiva por assim dizer axiológica, respeitante aos valores, as duas moedas de ouro – a arte e a vida – não possuíam o mesmo valor, para um e para outro. Mas não estaria mais certo, em última análise, aquele que priorizou a vida, ainda que em detrimento da arte? A resposta, leitor, “mon semblable et mon frère”, é fácil. Elementar.

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