Ano de sucesso para o cinema nacional

Quem lê as retrospectivas de fim de ano conclui que as principais notícias do cinema brasileiro são de ordem econômica. Num ano de recessão (mais um), de paradeira quase generalizada, o setor cresceu. Cresceu muito. Para se ter idéia, o público do cinema brasileiro de 2003 é cerca de 200% maior que o de 2002. Ocupamos 22% do mercado interno, nível não alcançado desde os anos 80. Brindemos a isso.

Mas esse tipo de análise é suficiente? Em se tratando de uma atividade em tese cultural, a resposta deve ser negativa. Análise econômica é necessária, mas não suficiente. Cinema não é apenas negócio, uma atividade comercial que emprega gente e movimenta dinheiro. Deveria ser também encarado como arte, visto como produção simbólica, enxergado em sua hipotética relevância cultural e social.

Uma faceta não se dissocia da outra. A discussão econômica é importante. Cinema, como qualquer atividade, precisa se viabilizar na prática. Mais ainda: filmes são em geral caros. Seus custos ultrapassam a capacidade econômica de uma pessoa física. Não nascem em árvores e sim no bojo de uma atividade econômica – mas não se esgotam nela.

A exemplo do que ocorre na economia como um todo, existem várias modalidades de convivência no modo de produção cinematográfico. Da linha de montagem de um programa de TV reciclado em longa-metragem ao artesanato de filmes como os de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, por exemplo. No entanto, essas categorias não se apresentam necessariamente como formas puras. Pode haver artesanato na indústria, como pode existir indústria no artesanato.

Alguns dos mais estimulantes filmes do ano vieram dessas formas mistas. Dois deles, em especial: O Homem Que Copiava e Amarelo Manga. O primeiro teve 664 mil espectadores; o segundo 128 mil. Ocupam a 9.ª e a 12.ª posições no ranking do ano, montado pelo boletim Filme B. Os dois primeiros lugares são de Carandiru e Lisbela e o Prisioneiro, com 4,7 milhões e 3,1 milhões, respectivamente.

O cineasta Jorge Furtado, diretor de O Homem Que Copiava teve a idéia de refinar esses dados. Dividiu o total de espectadores pelo número de cópias com que o filme chegou aos cinemas. Queria, desse modo, ter idéia da eficácia do filme em relação ao tamanho do seu lançamento. Assim, O Homem Que Copiava apresentou 9.495 espectadores por cópia, ocupando a 7.ª posição do novo ranking. E Amarelo Manga teve 9.205 espectadores por cópia, passando ao 8.º lugar.

Mais surpreendente: com o cálculo proporcional, dois documentários galgaram posições, Paulinho da Viola ficou em 9.º lugar com 9.495 pagantes por cópia e Nelson Freire foi para 4.º, com 12.158 espectadores por cópia. Em termos de rentabilidade, o documentário de João Moreira Salles sobre o grande pianista brasileiro só perde para Didi, o Cupido Trapalhão, Lisbela e o Prisioneiro e Carandiru, campeoníssimo segundo qualquer critério.

Resta ver se essa proporcionalidade realmente indica a viabilidade econômica, ou se um fracasso de muitas cópias pode ser mais rentável do que um sucesso em cópia única. De qualquer modo, esse refinamento na análise de dados aponta para uma conclusão (provisória). No mercado de exibição brasileiro, selvagem como qualquer mercado, parece haver nichos e frestas a serem explorados. Nessas frestas entram filmes como O Homem Que Copiava e Amarelo Manga, dois dos mais estimulantes do ano. Tão diferentes entre si, pulsam em sintonia jovem.

Não se pautam por qualquer tipo de classicismo cinematográfico e incorporam alegremente o ritmo, as gags, o som e a montagem do audiovisual contemporâneo. Seus conteúdos são distintos, como distintos são os sentidos atribuídos às obras por seus autores. O Homem Que Copiava, com toda a sua inteligência, talvez perca um pouco em densidade ao se propor como palatável ao público.

Amarelo Manga incorpora, sem problemas, a dor da vida em sua linguagem. Não teve medo de perder espectadores por isso. Incomoda mais, vai com mais gana à carne do social. Lá onde O Homem Que Copiava apalpa, Amarelo Manga enfia as unhas. Um é apolíneo, outro dionisíaco, e se completam bem em seu sentido de inovação. Falam do Brasil, ou melhor: daquilo que incomoda no Brasil, com sotaques e perspectivas diferentes.

Dois outros longas de ficção devem ser destacados nesse panorama: Durval Discos e Seja o Que Deus Quiser. Inovadores, ousados, não encontraram tanta ressonância como mereciam. O segundo, inclusive, incorpora e exacerba a linguagem pop como forma de desconstruí-la. Esbarrou, talvez, na proverbial dificuldade brasileira de trato com a ironia. Não sabemos reconhecê-la e, quando o fazemos, pensamos que é sarcasmo.

Por isso, Millôr Fernandes propôs que se criasse um sinal ortográfico para identificar a ironia. Como o próprio comentário era irônico, não foi compreendido. O documentário, tão em alta, se destacou com Paulinho da Viola e Nelson Freire, ambos dedicados a personagens da cena musical. Paulinho é mais expositivo; Nelson Freire trabalha com o lacunar. Também completam-se em suas diferenças.

Filmes de grande lançamento, como Carandiru e Deus É Brasileiro mostraram que nem sempre o poder econômico anda ao lado da baixa qualidade. Um mostra por que o Brasil deu errado; o outro mostra por que o Brasil pode dar certo. Também são pares especulares, embora isso só se veja depois, em perspectiva.

Enfim, tivemos um ano dos mais interessantes e não apenas por causa dos números de bilheteria, das cifras e porcentagens. Se do ponto de vista estético o ano não chegou a ser brilhante em seu todo, teve momentos de luminosidade em número suficiente para criar expectativa favorável em 2004.

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