Uma velha foto de Dalton Trevisan

Antes de se mudar em definitivo para uma chácara em São Mateus do Sul a que chama de dacha, meu amigo Mieroslaw Komarovski me procurou para deixar um presente. Ele entregou um envelope e pediu para eu abrir quando ele fosse embora. Fiquei angustiado não pelo envelope, mas porque sabia que era um adeus. Mirão beira os oitenta e se recolhe para os derradeiros capítulos de seus anos crepusculares. O que não significa que ele não viva tranquilo mais duas décadas e saiba que parti antes. As imprecisões fazem parte do campeonato da vida.

Abri o envelope e encontrei uma velha foto em preto e branco, desbotada, de quarenta anos ou mais, feita numa livraria. Demorou pouco para eu ver o sujeito magro de cabelos curtos espetados, óculos grossos, camisa xadrez, folheando um livro com atenção. Ele estava tão atento que não viu o fotógrafo. Talvez nem o fotógrafo foi ali para vê-lo. Aconteceu. Ele aparece no meio da foto. Eu pensei: “Este cara é o Dalton Trevisan!”. Virei a foto e estava anotado: “Dalton Trevisan numa livraria”. Este o presente.

Não sei se a foto foi publicada. Eu nunca a vi em lugar algum. Talvez o fotógrafo, por pudor, guardou-a para não destruir um raro registo – talvez saiu em alguma velha reportagem. Talvez ele desenvolveu um afeto com a foto e a guardou como prova de ser um profissional com olhos de lince. Como a foto foi parar com Mirão, não tenho a menor ideia. Talvez o fotógrafo tenha feito o que o meu amigo fez: vendo aproximar os seus anos crepusculares, para a foto não sumir numa fogueira de coisas velhas, passou-a para ele. E ele pelo mesmo motivo, passou-a para mim.

Eu fiquei deprimido. Não por Mirão e menos pela foto. Fiquei porque me lembrei das velhas livrarias de Curitiba. A foto seria na Ghignone da Rua XV ou na Livraria do Chain? Não saberia definir com exatidão. Se fosse recorrer à minha memória afetiva, eu diria que era a Ghignone da XV. Eu guardei a foto no envelope, botei-o dentro de um livro de arte – eles são maiores e é mais fácil encontrar a foto ali no dia em que quiser revê-la. Fui para a poltrona, sentei e fiquei pensando nas velhas livrarias da cidade. E, principalmente, nos velhos livreiros – dois maiores, José Ghignone e Aramis Chain, o primeiro com mais de 90 anos sobreviveu a última livraria que leva o seu nome e o segundo ainda está em seu endereço lúcido e crítico com os novos tempos.

Conheci o velho Ghignone em 1986 quando ele instalou em Londrina a filial no Edifício Fuganti, um dos mais antigos da cidade, perto da Concha Acústica. O segundo tinha uma filial, onde fui muitas vezes, na frente da Universidade de Maringá. Os dois preencheram minha vida com livros e gestos. Eu recordei um grito de dignidade bradado por Chain em 1991, quando se recusou a vender “Zélia Uma Paixão”. Por princípio, recusava o lucro a dar publicidade a melosa versão do frustrado affair da ex-ministra que ferrou o Brasil. Um livro que enterrou a reputação de grande escritor construída por Fernando Sabino, que preferiu morrer ghost writer. Me lembrei de Ênio Silveira, de Caio Craco Prado e de outros sujeitos. A foto que Mirão me deu causou belo estrago. Mas, ainda assim, é melhor refletir sobre os dias de hoje a viver entorpecido.