Carneiros e cabras solenes no jardim

Nos anos 70, a cantora Elis Regina fez grande sucesso com uma música cujo título é ‘Casa no Campo‘. O primeiro verso é uma confissão bucólica: ‘Eu quero uma casa no campo‘. Verso seguido de outros tão bonitos: ‘Onde eu possa compor muitos rocks rurais, e tenha somente a certeza, dos amigos do peito e nada mais‘. Elis cantava bem e Zé Rodrix, autor da letra, era grande compositor. A certa altura, ela diz: ‘Eu quero carneiros e cabras pastando solenes no meu jardim‘. Parece sonho. Ter casa na cidade com atmosfera de uma casa no campo, então, parece impossível. Mas eu vi. Em minhas caminhadas pelas ruas da cidade.

Eu esperava o ônibus no ponto da avenida Garibaldi, quase esquina com a rua José Sperancetta, no São Lourenço. Que cena! Dezenas de carneiros e ovelhas pastando numa área que mais parece uma chácara, ao lado de uma residência com o conforto da cidade e o esplendor do campo. Um velho japonês que também esperava o ônibus não se conteve e se abaixou para pegar um pedaço de planta para alimentar um pequeno carneiro através da cerca de arame. O bicho veio comer na mão do velho e ele ficou feliz. O homem anda tão brutalizado pelo rito moderno, que se volta aos animais em busca de comunicação, para sentir-se parte do conjunto de vida que o planeta abriga.  

Uma senhora me viu observar ovelhas e carneiros pastando e disse: ‘Daqui um pouco as vacas sobem para pastar‘. Ela mora perto e disse que sempre foi assim naquele lugar. Desde que ela era criança. A cena não me surpreendeu porque ela me é familiar pelo menos nos últimos dezesseis anos, que é o tempo em que moro no bairro. A primeira vez, por volta de 1997, sim, eu me espantei, como aquilo era possível ainda mais numa metrópole. Dezenas de carneiros, vacas e bois pastam enquanto na avenida a poucos metros pessoas apressadas dão ritmo totalmente diferenciado para o dia-a-dia da cidade.

Eu não sei quanto tempo aquele lugar se manterá assim – com saudável anacronismo urbano. A região, de ano para ano, tem os raros espaços vagos ocupados e as velhas casas de madeira compradas para construção de sobrados e condomínios. Nos anos 90, a rua Nilo Brandão era quase deserta e hoje os congestionamentos são constantes. A cidade avança sobre o campo e certamente não perdoará por muito tempo um pedaço do campo em suas entranhas. As poucas velhas casas da Nilo Brandão estão à venda. Pequenas edificações de natureza comercial estão sendo construídas.

E a poucos metros dali, aquele pedaço rural ignora a engrenagem urbana. Que seja assim por muito tempo, não há nada para quebrar o estressante e agitado ritmo da metrópole que uma cena rural, recheada de verde e de animais pastando tranquilos, distantes de tudo que forma os emblemas mais notórios de uma cidade: correria, buzinas, gente nervosa. Provavelmente o dono da propriedade não precisa cantar a música de Elis Regina, porque ele inverteu a letra: ele conseguiu ter o campo na cidade. Algo absolutamente fantástico. Mas conseguiu. O ônibus demorou a chegar, mas ninguém que o esperava se irritou. Na verdade, uma força atávica parecia nos segurar. Como se fosse um apelo do campo. Um apelo que remonta às nossas origens.