A incrível resistência do carimbo

Nelson Azeitona é um feio que se acha bonito. Não é o único. Alguns acham que ele é tonto, mas se enganam, ele é inteligente. Ele trabalha de office-boy e quando percebe uma fria, se afasta rindo, com o braço direito encolhido e mão na cabeça, como se protegesse de um golpe, num inconsciente gesto defensivo. E pronuncia a sua frase mais conhecida: ‘Ô loco, sô!‘. Isto significa que escapou de mutreta que tentaram armar, inútil, porque ele não é bobo. Está sempre rindo e dizendo que muitas garotas gostam dele. Provavelmente mentira. Para sobreviver, Nelson Azeitona tenta ser malandro num universo cheio de malandragem.

Por isto estranhei quando o encontrei andando com aquele estilo meio oscilante, porém ligeiro, ontem na rua XV. Eu perguntei aonde ia e como tivesse visto assombração ele pronunciou a expressão inconfundível: ‘Ô loco, sô!‘ Eu quis saber o que aconteceu e Nelson Azeitona contou. Na realidade, falta esclarecer que embora seja garoto de recados ele entrou na sua empresa como estagiário. Um estagiário que trabalha como alguém que não é estagiário. O importante é que Nelson Azeitona procurava uma fábrica de carimbos – eu indiquei um lugar que faz carimbos numa galeria da praça Tiradentes.

O grande mistério era: para quê ele queria um carimbo? Ele disse que precisava carimbar um comunicado de sua empresa para a agência de estágios e esta não aceitava nenhum papel que não fosse carimbado. O problema era que a empresa em que ele estagia não tem mais carimbos há dez anos. Foi tudo abolido em nome da agilidade. Nem carimbo com o nome do diretor e muito menos com o nome da empresa. Para não criar um problema, a empresa mandou fabricar um carimbo. E, agora, Nelson Azeitona procurava uma fábrica de carimbos.  

Até Nelson Azeitona que não é PhD em gestão de Pessoas sabia que aquilo era burocracia. Mais: sinal de atraso. E havia uma grande contradição: como uma empresa que gerencia um sistema anunciado como moderno em introdução de pessoas no mercado de trabalho, o tal do estágio, estava recorrendo a um método tão primitivo – um papel com carimbo – para averiguar se a pessoa estava realmente no local indicado por ela? Sem contar que qualquer um pode fazer um carimbo e carimbar um papel e assinar, sem que isto represente legitimidade.  

Bem, o resumo da ópera é o seguinte: Nelson Azeitona mandou fazer um carimbo, a empresa pagou, alguém rabiscou uma assinatura com a caneta Bic no papel carimbado e a agência de estágio ficou feliz da vida e finalmente acreditou que Nelson Azeitona estava estagiando de acordo com as normas estabelecidas no local indicado. Algumas horas depois, Nelson Azeitona estava feliz e não falava mais ‘O loco, sô!‘. Mas fiquei impressionado com o episódio. Eu pensei que o reinado do carimbo tivesse acabado. Mas não acabou. O carimbo está vivo, respira por aparelhos, está senil, mas ainda está por aí, carimbando, plunct, plact, zum.

Houve um tempo que sem carimbo num papel o sujeito não era ninguém. Nem vivo ele era. Sem carimbo estava morto. Era preciso carimbo em tudo. Em muitos casos com firma reconhecida e testemunhas. O carimbo, hoje, é sinal de atraso e de burocracia. Mas ele ainda rasteja por aí e assusta sujeitos como Nelson Azeitona.