O buraco negro da estrela

Gaudêncio Torquato

O País gasta por ano cerca de R$ 150 bilhões em políticas sociais. E mais alguns bilhões de palavras para descrever onde foram aplicados os recursos, superestimar os efeitos dos programas e fazer a propaganda de governos. Depois de muito palavrório, aparecem velhas estatísticas e algumas surpresas: os 10% mais ricos continuam a deter metade da riqueza nacional, enquanto os 10% mais pobres possuem menos de 1%. O candidato Lula não acreditava que 53 milhões passassem fome no Brasil. É o que está no documentário feito por João Moreira Salles. Agora, o IBGE confirma a descrença, mostrando que o País não tem tantos famintos quanto se dizia. Apenas 8 milhões de adultos desnutridos para 38,8 milhões com excesso de peso, dos quais mais de 10 milhões de obesos. Mas o Lula presidente desqualifica a pesquisa daquele instituto, ao dizer que as pessoas se envergonham de dizer que têm fome. (Entenda-se o que se passa na cabeça dos nossos dirigentes…) Mais surpresa: a renda do fator trabalho, que já alcançou 60% da renda interna (quando o País era mais pobre), hoje gira em torno de 40%. O Brasil é mesmo paradoxal.

Cercados de estatísticas para todos os gostos, os buracos sociais continuam profundos, mesmo com os fabulosos recursos que neles se injetam. E as razões para tanto são conhecidas. As verbas são pulverizadas, mal aplicadas, desviadas, usadas eleitoralmente e até expropriadas por administradores corruptos. Fosse levada por Papai Noel, neste final de ano, a montanha de recursos chegaria mais rápido e mais perto da pobreza do que transportada pelos atuais condutores, cujo trajeto é cheio de corruptodutos. Outra ordem de argumentos para explicar a poeira em que se transforma a "dinheirama do social" está na cultura assistencialista, materializada em programas aleatórios do tipo Fome Zero, Bolsa-Escola, Bolsa-Renda, Bolsa-Alimentação, Bolsa-Criança e assemelhados, alguns extintos, uns em fase de mutação e outros quase em inanição.

A ruína que se produz com coisas tão ignóbeis como assistencialismo, tráfico de influência e desvio de verbas públicas não tem afetado a imagem dos governos, ao menos na proporção do tamanho dos crimes. Basta ver que recentes denúncias sobre descontrole na distribuição do dinheiro do Bolsa-Família nem de leve balançaram a administração federal. Tanto ela quanto o presidente continuam com boa imagem nas pesquisas. Diante dessa constatação, não se sustenta a propalada idéia de que o fator social, no ano decisivo de 2005, será a espada de Dâmocles sobre a cabeça de Lula. A não ser que o conceito de "social" ganhe roupagem diferente. Nesse caso, deixa de ser sinônimo de pobres e miseráveis para abrigar outros conjuntos sociais, particularmente estratos médios. Essa é a hipótese para relacionar o fator social com o desempenho geral do governo. O que leva a concluir que o poço onde Lula e seu governo se podem afogar está mais em cima.

Tal hipótese ganha força quando se avalia o modelo de solidariedade e defesa vigente num país que convive com duas redes de proteção social. Uma, destinada aos grupamentos sem recursos, que dependem da provisão dos serviços do Estado. Outra, voltada para quem possui alguma poupança e é capaz de adquirir serviços privados. A ação estatal volta-se para o reforço de ambas, sem preocupação com a integração de seus pólos. Veja-se o caso da educação e da saúde, cujo foco é o da universalização do acesso aos serviços. Fomenta-se, de um lado, o nível básico de ensino, sob o abrigo estatal; e, de outro, se incentiva o ensino superior, de caráter público e privado, porém apresentando, nos últimos anos, forte perfil privatizante, cuja conseqüência é a restrição para estudantes pobres. Rompe-se o fio da educação. Na saúde, os carentes dispõem de serviços básicos, mas a precariedade do sistema acaba maltratando a meta de universalização. Em outro campo, classes médias empobrecidas "seguram as pontas" para arcar com sistemas de seguro que atravessam grave crise.

O Estado entrega uma cesta furada de serviços aos pobres e uma fatura cheia de tributos às classes médias, sem a devida correspondência de serviços. As classes pobres reagem de maneira paciente e conformista. Já as classes médias abrem o universo da locução, mobilizando entidades e fazendo pressão. Os primeiros vêem sua cidadania comprimida pela fragilidade da ação do Estado. Os segundos adquirem a duras penas os meios para construir sua cidadania. Exemplo disso é a segurança. O País gasta anualmente cerca de R$ 50 bilhões em segurança privada. Há no País 600 mil vigilantes ativos, enquanto o efetivo da Polícia Militar é de 370 mil policiais. Só São Paulo, capital, registra 1.200 assaltos por dia. Essa é a face escancarada da falência do Estado na preservação da segurança dos cidadãos.

Por aí se pode medir o tamanho dos vazios sociais. Portanto, não haverá grande barulho (a não ser dos previsíveis mutirões do MST) saindo do andar de baixo. Já o espaço mais em cima, onde se refugiam as classes médias, este, sim, tem condições de se transformar no imenso buraco negro com empuxo para sugar a estrela petista.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.